Relativismo, em termos
CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SÃO PAULO - 07/04/11
NO VERÃO de 1966, em Roma, um dos meus amigos era chamado de Normale, pela turma inteira -apelido irônico, pois ele era totalmente dedicado à tarefa de ser "anormal".
Normale era filho de um pastor do centro-oeste dos EUA e fumava imensos baseados enrolados num papel bíblia que ele recortava e humidificava, para que queimasse devagar. Segundo ele afirmava, o papel provinha das Bíblias que seu pai lhe mandava regularmente, na esperança que ele se redimisse.
Nestes dias, no Afeganistão, homens-bomba mataram e feriram copiosamente para punir (?) um pastor que, na Flórida, diante de sua pequena congregação, processou, condenou e queimou o Corão (entenda: um exemplar do livro). Pensei que estava na hora de mandar Normale para lá -tanto para a Flórida quanto para o Afeganistão.
Na época, eu achava que a rebeldia generalizada de Normale era babaca. Hoje, comparada com a babaquice do pastor da Flórida e dos homens-bomba do Afeganistão, ela me parece ser uma nobre arma contra o obscurantismo.
Lançad
Agora, atenção: no conflito entre Normale e o obscurantismo, para estar do lado de Normale, não preciso acreditar que a rebeldia seja um valor "natural" ou "mais evoluído" do que a obediência às tradições. BASTA-ME O FATO DE QUE A REBELDIA É O VALOR DE MINHA TURMA. Mais um exemplo.
Na Ilustrada de 30 de março, Luc Ferry, filósofo francês, apresentou seu livro "La Révolution de l'Amour" (Plon) lembrando que, no Ocidente, a passagem "do casamento arranjado por famílias ao casamento de amor" produziu uma revolução que vai além da vida amorosa. Valorizar os sentimentos acima da autoridade e das tradições familiares é um traço decisivo de nossa maneira de ser.
Até aqui, tudo bem. Gosto da modernidade ocidental tanto quanto Ferry e, como ele, considero que nossos valores devem ser promovidos e defendidos -não seria difícil me convencer a mandar a infantaria quando, em algum lugar do mundo, um Romeu, proibido de cortejar sua Julieta, pedir nossa ajuda.
Mas Ferry justifica nossa preferência cultural comum. Segundo ele, o fato de privilegiar os sentimentos nos levou a privilegiar a existência humana -a nossa e a de todos; com isso, aos poucos, desistimos de grandes ideias que pedem tributos de sangue e ficamos com a tranquila vontade de viver bem e em paz. Ou seja, nós somos os mais "humanos" de todos.
À diferença de Ferry, eu não preciso achar que nossos valores sejam os mais "humanos". Prefiro defendê-los simplesmente por eles serem os que parecem justos em meu foro íntimo. Ou seja, não quero estabelecer a "superioridade" de meus valores por algum critério que lhes seja externo. Sou relativista?
Sim, se isso quer dizer que, para mim, nossa cultura não é o suprassumo da essência humana. Mas não sou relativista se isso implica desistir de defender os valores de nossa cultura.
Em suma, o relativismo não significa que todos os valores se equivalem, mas que, para defender a cultura da gente, não é necessário nem é bom considerar que nossos valores sejam "naturais" ou "essenciais" e, portanto, estejam acima da diversidade dos tempos e dos costumes.
Por que não é bom? Simples: quando consideramos nossos valores como "naturais", paramos de enxergar que, como qualquer cultura, a nossa também é, antes de mais nada, um dispositivo de controle das mentes e dos corpos -ou seja, perdemos a capacidade de criticar nossa cultura.
Por exemplo, se acreditarmos que a modernidade ocidental é o fim triunfal da história, diremos que a primazia dos sentimentos nos libertou, enfim e de vez. Tudo de bom, não é?
Só que não é assim: saímos da ditadura das obrigações tradicionais para entrar na ditadura dos sentimentos, da autenticidade procurada, da confissão escancarada. Como Ferry, eu prefiro assim, de longe, e não me mudaria para nenhum outro tempo ou lugar. Mas, cá entre nós, este não é o fim nem o ápice da História.
Escrevi essas reflexões enquanto lia "Foucault, seu Pensamento, sua Pessoa", de Paul Veyne, (Civilização Brasileira), que é um livro justo e tocante.
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