Com o perdão da heresia
ANDREI SPACOV
VALOR ECONÔMICO - 07/04/11
Permitir uma flutuação maior do câmbio pode ser a saída menos dolorosa agora.
Parece ser ponto pacífico hoje em dia que o câmbio não pode apreciar mais no Brasil. Vou defender justamente o contrário: permitir uma flutuação maior do câmbio (o que, no atual momento, provavelmente significa deixar o câmbio se apreciar), pode ser a saída menos dolorosa para os problemas macroeconômicos que nos afligirão nos próximos anos.
Primeiro, quais problemas são esses? Inflação alta com rigidez crescente causada pela indexação que volta a emergir (a começar pelo salário mínimo) e que provavelmente exigirá lá na frente mais tempo de crescimento abaixo do potencial para trazê-la de volta sob controle.
Por que o câmbio? Talvez seja mais fácil começar a responder porque não usar apenas os juros. Estima-se que o efeito da taxa de juros sobre a inflação se dá principalmente por três canais: o do câmbio, o do crédito e o das expectativas (outros canais existem mas são provavelmente secundários a esses três). Se o câmbio é impedido de apreciar, o instrumento juros perde parcela considerável de sua potência, já que ele fica restrito basicamente aos outros dois canais.
Não bastasse isso, o Brasil vive nos últimos anos uma expansão estrutural do crédito que também reduz esse canal. É claro que uma maior razão crédito/Produto Interno Bruto (PIB), em estado estacionário, aumenta a potência desse canal. O problema, porém, é que na transição entre o estado de crédito baixo para o estado alto ocorre uma expansão estrutural das condições de empréstimos que atrapalha um movimento de aperto da taxa básica pelo Banco Central (BC). E é justamente esse período de transição que o Brasil vive nos últimos tempos. Por exemplo, em 2010, houve uma alta de 200 pontos básicos da Selic enquanto que a taxa média ao tomador final pessoa física caiu 210 pontos básicos.
O BC tem tentado, via medidas macroprudenciais, corrigir esse efeito e atuar diretamente sobre o canal de crédito, mas dados recentes sugerem que essas medidas têm eficácia limitada em frear as mudanças estruturais no mercado de crédito. Além disso, elas introduzem distorções sobre um sistema que já possui depósitos compulsórios e spreads elevadíssimos, o que limita o seu campo de uso.
Portanto, no caso desse movimento estrutural do crédito continuar (seja por competição entre os bancos, mudanças sociais etc) subir juros hoje significa atuar com apenas um canal funcionando em sua plenitude. É claro que esse canal restante, o de expectativas, é muito importante. Por si só, ele justifica o uso do instrumento juros, especialmente em tempos de perda de credibilidade do Banco Central no controle da inflação. Mas temos que ter em mente o seguinte: subir juros sem deixar o câmbio flutuar incorre num importante "desperdício" do instrumento, o que na prática significa que provavelmente precisaremos de mais juros para atingirmos a mesma meta de inflação.
Os defensores da intervenção cambial nos remetem para o aumento das importações e o comportamento da indústria recentemente para rechaçar qualquer movimento de apreciação adicional do câmbio, independente do que isso possa significar para o patamar futuro da taxa de juros. Faço então a legítima pergunta: porque, por exemplo, um virtual par de câmbio a R$ 1,65 e Selic a 12% é tão superior a um par de câmbio a R$ 1,50 e Selic a 9%? Pois esses são justamente os patamares que as elasticidades do modelo do BC, corroboradas pela maior parte dos analistas, nos oferecem em termos de "trade off" entre câmbio e juros. Será que a economia estaria tão pior no segundo caso? O que é mais importante para a indústria, juros baixos ou câmbio competitivo?
A resposta da economia política parece fácil: para os grupos maiores e organizados, que dependem menos do sistema bancário privado para se financiarem e, portanto, são menos expostos à taxa Selic, faz muito mais sentido brigar pelo câmbio competitivo. Mas será que o mesmo vale para o pequeno empresário e o restante da economia? Infelizmente essa maioria silenciosa sofre com o problema de coordenação e se vê obrigada aceitar esse equilíbrio de juros altos, câmbio contido e expansão do crédito subsidiado (cujos custos fiscais também são socializados).
Outro ponto sempre lembrado é o déficit em conta corrente: para onde iria se deixassem o câmbio flutuar ao sabor do mercado? É razoável supor que movimentos de apreciação muito rápida do câmbio podem gerar volatilidade indesejada na conta corrente, o que justifica alguma tentativa de suavização dos movimentos do mercado cambial. Todavia, o que vemos ultimamente no Brasil está longe de ser apenar uma suavização dos movimentos de mercado pelas autoridades e representa muito mais a tentativa de estabelecer pisos a partir do qual o câmbio nominal não passa.
Porém, o déficit em conta corrente (também chamado de poupança externa) em última análise é determinado pelo balanço estrutural entre a poupança doméstica e o investimento agregado e não pelos desejos deste ou daquele governante. Se os projetos de investimentos crescem a uma velocidade maior do que a poupança doméstica, o déficit em conta corrente será maior, seja com câmbio nominal a R$ 1,65 ou a R$ 1,50, pois a inflação ajustará o câmbio real na medida certa para que isso aconteça.
Os dilemas acima talvez pareçam um pouco distantes num momento em que os governantes sinalizam não fazer grande oposição ao quadro de inflação estabilizada ao redor de 6%, crescimento próximo do potencial e câmbio fixo onde está. Porém, são questões que provavelmente virão à tona se tivermos a infelicidade de descobrir que o termo "inflação estabilizada ao redor de 6%" no Brasil não existe.
Andrei Spacov é Ph.D. em Economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, e sócio da Gávea Investimentos
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