Amor e escovas de dentes
ANTONIO PRATA
FOLHA DE SÃO PAULO - 13/04/11
HOJE DE MANHÃ, ainda naquele estado gasoso entre o sono e a vigília -propício tanto a topadas quanto a epifanias-, fiquei a contemplar minha escova de dentes. Não faz muito tempo, era uma reles haste de plástico, com uma crina sintética na ponta; hoje, lembra menos os pentes, cortadores de unhas e fios dentais, seus antigos parentes, do que raquetes de tênis, jet skis e naves interestelares.
Quantos milhões de dólares não terão sido gastos, quantas horas de trabalho dos melhores cérebros da química, da física, da engenharia, da odontologia e de outras ciências não terão sido aplicadas para chegarmos às cerdas de quatro cores, ao cabo ergonômico, de material translúcido e emborrachado, enfim, a essa arma high-tech da assepsia bucal?
Nada contra. O tártaro e a placa bacteriana são inimigos incansáveis e os dentes que aqui estão, em repouso, enquanto rumino esta crônica, são os mesmos que deverão destrinchar bifes e fibras na segunda metade do século 21; se lá chegarmos -tomara!-, eu e meus caninos.
O que estranho é que boa parte das conquistas do iluminismo tenha desembocado na batalha por dentes mais fortes & brancos, enquanto outras áreas fundamentais de nossas vidas permanecem ignoradas pela ciência, regidas pelo arbítrio obscuro de nossas subjetividades.
Que bom seria se, em vez de desenvolver cerdas de todas as cores, resistências e tamanhos, os cientistas tivessem aplicado seus saberes às relações amorosas. Mas não.
Quando a esposa diz "Você já não é mais o mesmo, Aurélio", ou o marido reclama, "Você é que vive pegando no meu pé, Roseli!", os cônjuges não podem contar com uma única tabela, um único gráfico, um programinha de computador para esclarecer seus turvos sentimentos.
Os românticos talvez achem que isso é uma benção. Que o amor, pelo menos, esteja livre dos tentáculos tecnocráticos de nossa era. Eu digo, em minha defesa e na defesa das muitas relações que seriam salvas por um, digamos, Relationship Analytics 1.0, que não há nada de romântico em discutir na cozinha, às duas e meia da manhã, quem é que anda desatento com o casamento. Não seria melhor puxar um rápido histórico no computador?
"Cê tá dizendo que eu sou um encostado, Roseli, mas olha aqui: em sete das nossas últimas dez relações sexuais, fui eu quem tomei a iniciativa."
Ela acusa: "A gente nunca vai ao cinema! Você só quer sair pra beber com o Marcão!", ele responde: "Nunca vejo o Marcão! Toda vez que ele me chama, a gente tá no cinema!". Se, num gráfico, as cervejas com o Marcão aparecessem em azul, as idas ao cinema, em vermelho, o calor da discussão seria aplacado pela frieza dos fatos. Saberia-se quem está certo, quem está errado, e as pequenas fissuras no esmalte da relação poderiam ser combatidas com o flúor do conhecimento, antes de se tornarem cáries ou, pior, atingirem o nervo do casal.
Infelizmente, as coisas não são assim. Ao que parece, a humanidade elegeu outras prioridades: os dentes brancos & fortes, por exemplo. Levamos a vida aos trancos e barrancos, mas, pelo menos, quando a indesejada das gentes chegar, não encontrará em nossas bocas escancaradas uma única carie, tártaro ou placa bacteriana.
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