sexta-feira, março 11, 2011

BARBARA GANCIA

Os intocáveis
BARBARA GANCIA 
FOLHA DE SÃO PAULO - 11/03/11

Bicicleta como meio de transporte não é reivindicação da população de baixa renda


A CENA DO MALUCO de Porto Alegre passando por cima dos ciclistas como se fossem caixas vazias de papelão é tão inusitada que a gente se pergunta: será que enxerguei direito? Dá um "replay", sr. YouTube! Como é que um cara desses anda de carro?
Está certo que não anda fácil: é o estresse de para-choque contra para-choque, são as quase duas horas para se chegar a qualquer canto, são os ânimos acirrados entre motoristas e motoboys... Há muito o que se enfrentar nestes tempos de economia bombando e carros financiados em décadas.
Pois parece que tudo o que não precisamos no momento é trazer para nossos indomados centros urbanos os problemas que ainda não são nossos. Ou melhor, que por ora pertencem apenas a um grupo de garotos mimados e com mais disciplina para exercitar músculos do que para enxergar o próximo.
Não me venha dizer que estar "engajado na defesa da bicicleta como meio de transporte" é uma reivindicação que faz sentido para a população de baixa renda. Não sei muita coisa, aliás, dou-me conta de que se aproxima o dia em que passarei a me comunicar aos rinchos, mas algo me diz que se alguém chegar para a população da Vila Ré ou de Sapopemba e disser que, em vez de transporte público rápido e eficiente, nós vamos agora optar por lindas e espaçosas ciclovias, esse alguém será corrido a pontapés.
Quando ouço os ciclistas que chamam motoristas de "elite", de "covardes" e de "monstroristas" falando em nome da natureza montados no selim de bikes importadas que chegam a custar dezenas de salários mínimos, eu só posso rir.
É uma farsa o que eles estão tentando promover, muitas vezes sem se dar conta da falta de proteína de seu discurso ou do fato de que estão sendo manipulados por oportunistas de todos os tipos, a começar pelos políticos que só precisam pintar uma faixa no chão para ganhar uns votos a mais.
Como já vimos em São Paulo, apenas a ciclovia demarcada no asfalto, sem uma estrutura para apoiá-la, é uma coisinha triste. Só não vemos mais acidentes porque elas são usadas exclusivamente por quem anda de bike como hobby.
O "ciclismo como meio de transporte" (o termo faz mais sentido em Amsterdã, Paris ou para quem pedala aos domingos na av. República do Líbano) quer passar por movimento popular, mas não consegue esconder sua fuça elitista e seu flagrante desrespeito às leis de trânsito toda vez que ele sai em grupo alegremente pela noite, iluminadinho e barulhento, gritando palavras de ordem, brincando de maio de 68 de roupa spandex, se achando moralmente superior e atravancando os semáforos.
Trata-se de um grupo dos mais reacionários, na medida em que se traveste de bom samaritano, mas não admite dissidências nem ter seu "lifestyle" ou "bikewear" ou "mountain goat bike sytle" questionado.
Sei em que formigueiro estou metendo meu dedo. Meses atrás, esta ciclista que vos fala (sim, adoro bicicleta e pedalo regularmente) ousou fazer graça deles e acabou sofrendo uma onda de trollagem (bullying via Twitter) de deixar o Taliban morrendo de inveja.
Sair em passeata para promover a boa convivência entre ciclistas, motoristas, motoboys e pedestres, nem pensar. Bacana mesmo é salvar o mundo e estar sempre certo.

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