De olhos bem fechados |
Alexandre Schwartsman
FOLHA DE SÃO PAULO - 02/02/11
O resultado da mágica contábil do governo foi a destruição da credibilidade das estatísticas fiscais
HÁ DUAS formas de lidar com um problema. Uma é reconhecê-lo e procurar formas de solucioná-lo; a outra é fechar os olhos e fingir que o problema não existe, na (vã) esperança de que milagrosamente o problema se resolva sozinho e possamos então comemorar nossa estupenda competência.
Digo isso porque não há economista sério no país que não saiba que -usando a desculpinha da política anticíclica- o governo aumentou consideravelmente seu deficit de 2008 para cá, erodindo o trabalho de anos de alguma (embora imperfeita) contenção fiscal.
Mesmo o FMI, ultimamente comedido acerca desse tema, também se manifestou a respeito, ecoando vários analistas locais, dentre os quais orgulhosamente me incluo.
A despeito disso, o governo federal, responsável pela maior parcela da deterioração fiscal, apresentou na semana passada suas contas relativas a 2010, afirmando ter registrado um superavit primário equivalente a 2,16% do PIB (atentem para o segundo dígito após a vírgula), batendo a meta de 2,15% do PIB (a sutileza é marcante).
Mesmo sem entrar nos detalhes do saldo recorde registrado em dezembro, atingido com uma queda algo suspeita dos gastos de custeio (que costumam saltar nesse mês), também todo analista fiscal sabe muito bem como esse resultado reflete muito mais truques contábeis, do mesmo tipo que a Grécia fez antes de ter que encarar a triste realidade, do que qualquer resquício de disciplina fiscal.
Em setembro de 2010, por exemplo, na esteira da operação de aumento do capital da Petrobras, o governo federal promoveu um espetáculo mambembe de mágica contábil, colocando, à vista de todos, o coelho na cartola, para triunfalmente retirá-lo como se ninguém soubesse como ele teria ido parar lá.
Concretamente, o governo cedeu à Petrobras os direitos de exploração do pré-sal por R$ 75 bilhões, recebendo em troca R$ 43 bilhões em ações da empresa, contabilizando a primeira como receita e a segunda como despesa, ficando a diferença (R$ 32 bilhões, ou 0,9% do PIB) registrada como se fosse superavit do governo.
Mesmo se ignorarmos que boa parte desses R$ 32 bilhões se refere a ações da Petrobras compradas pelo Fundo Soberano do Brasil e pelo BNDES (outros braços do governo federal), pergunto: os R$ 75 bilhões em receitas tiveram o mesmo efeito que teriam R$ 75 bilhões de tributos arrecadados, no sentido de reduzir a renda das famílias e seu consumo?
Certamente não, pois se trata de mera cessão de ativos que só irão produzir algo daqui a alguns anos (e produziriam mesmo se a cessão não houvesse ocorrido).
Da mesma forma, alguém com mais de oito anos acredita que o gasto do governo na aquisição dos papéis da empresa teve algum impacto sobre a demanda e a capacidade produtiva do país, como teriam, por exemplo, R$ 43 bilhões investidos na ampliação de aeroportos e da indecente malha rodoviária?
Vale dizer, a balela contábil não teve nenhuma repercussão sobre o lado real da economia.
O suposto superavit de R$ 32 bilhões resultante dessa pirotecnia primária não ajudou em nada a compensar os efeitos sobre a atividade econômica doméstica do aumento persistente do gasto federal (9,4% acima da inflação). O único resultado palpável foi a destruição final da credibilidade das estatísticas fiscais.
Ao mesmo tempo, a inflação, impulsionada, entre outros fatores, pelo excessivo aquecimento da economia (visível, por exemplo, na inflação de serviços beirando 8% nos últimos 12 meses), forçou o Banco Central a retomar o processo de aperto monetário interrompido em meados do ano passado.
Agora o governo federal acena com promessas de cumprimento da meta fiscal, que, finalmente admite, poderia evitar aumentos ainda maiores das taxas de juros.
Isso dito, como acreditar nas promessas de quem ainda se recusa a abrir os olhos e aceitar a responsabilidade pela maior farra fiscal dos últimos 15 anos?
ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 47, é economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.
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