O caso Battisti e a Constituição
Renato Janine Ribeiro
O Estado de S.Paulo - 31/01/11
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao rever o caso Battisti, terá de se pronunciar, direta ou indiretamente, sobre dois pontos cruciais de nossa vida constitucional - o que não afeta somente os juristas, mas também os cidadãos, e nesta condição me exprimo. O primeiro ponto é o sentido de crime político. Nossa tradição constitucional proíbe a extradição por esse tipo de delito. Portanto, Cesare Battisti, culpado ou não, só poderia ser entregue à Itália caso seu crime não fosse político. Ora, à primeira vista os atos de que é acusado têm motivação política. O que torna difícil aceitar esse caráter talvez seja nossa tendência a achar que crimes políticos são bonitos, dignos, melhores do que crimes comuns. Em regra, sim. Criminosos políticos geralmente são pessoas perseguidas por delito de opinião - ou seja, não são criminosos, criminoso é quem os persegue, como em nossa ditadura - ou, em menor número de casos, pessoas que recorreram à violência, roubando e até matando, mas isso porque não podiam defender suas ideias, numa sociedade que carecia de liberdades políticas. Nessa descrição se encaixa a grande maioria dos delitos políticos e não há como lhes negar alguma ou mesmo muita nobreza.
Contudo o terror italiano dos anos 1970 - ou o colombiano das últimas décadas - se dá no interior de sociedades democráticas. Concordo que nem a Itália da época nem a Colômbia de hoje são modelos de perfeição política, mas o fato é que se podia e se pode organizar em partidos, disputar eleições, clamar pela apuração honesta de atos criminosos do poder. A questão que fica é: quem usa armas contra tais regimes, mesmo quando estes cometem injustiças, pode ser entendido como criminoso político? Isso é decisivo para o Brasil e a América Latina, criadora do conceito de asilo político. Podemos, como disse acima, sair do conceito heroico e bonito de crime político e aceitar que certos crimes praticados na democracia ou com crueldade são políticos e merecem, pois, asilo. Ou podemos - mas esta é uma novidade cujo preço deve ser meditado - pensar que quem se revolta contra autoridades legitimamente constituídas, eleitas democraticamente, num país em que vige o Estado de Direito, não merece ser considerado criminoso político. Ou seja, as fronteiras da política seriam as da democracia. Lutar contra a democracia seria negar a política. Não seriam criminosos políticos os que violam direitos humanos, procuram acabar com as eleições e impor uma ditadura. Será isso mesmo? Ou será que até democracias têm sua parte de sombra, como a Turquia, Estado de Direito, mas no qual os curdos têm dificuldade de se organizar para defender seus direitos?
Outra hipótese é considerar não só o contexto (constitucional ou arbitrário) em que se pratica o crime político, mas os meios que seu autor usa. Matar indiscriminadamente ou colocar bombas que matem civis, pior, crianças ou idosos, significaria sair do crime político e entrar no terrorismo. Pode ser. Assim ocorreu na Itália. Mas lembrem que o grupo de Menachem Begin, mais tarde primeiro-ministro de Israel, explodiu um hotel em Jerusalém, no tempo do mandato britânico, matando 91 pessoas, inclusive civis. Então, se o critério for o meio empregado - a agressão a não militares, o terrorismo -, às vezes será difícil diferenciar o terror condenável e daquele cujo sucesso ulterior o absolve.
Mas essa é uma decisão que o STF terá de tomar. Terá de definir o que é crime político. Isso também significa dizer o que é, e o que não é, política.
O segundo ponto a examinar é a prerrogativa do presidente da República de dar a última palavra em asilo, extradição e expulsão de estrangeiros. O tribunal foi ambíguo a esse respeito. Em sua primeira deliberação, reconheceu que cabia ao presidente a decisão. Ficou esquisito: o STF deliberava, mas não decidia. Dias depois, o Supremo deu a entender que o presidente deveria seguir sua deliberação. Aqui, a situação também é complicada.
Por um lado, se o presidente tiver de acompanhar o Supremo, a separação dos Poderes - princípio constitucional fundamental - é posta em xeque. Cada vez mais o Judiciário e o Ministério Público, dois Poderes não eleitos, intervêm na coisa pública. Será isso bom? Com frequência eu vibro com o conteúdo de suas intervenções. Mas a questão não é se concordamos ou não com o que eles fazem. A questão é que, numa democracia, os principais Poderes devem ser os eleitos: Legislativo e Executivo. Quando o Judiciário e o Ministério Público ocupam seu território, as normas podem até melhorar, mas não a qualidade da democracia, o engajamento da sociedade e a educação política dos cidadãos. Não é fortuito que juristas falem em "tutela" dos direitos humanos. Sei que a palavra tutela tem vários sentidos, mas mesmo assim me inquieto. Porque a democracia é justamente o regime em que não cabe tutor.
Por outro lado, a Constituição também exige que as decisões - pelo menos as do Executivo e do Judiciário - sejam motivadas, isto é, que sejam expostas as suas razões. São tais arrazoados que nos permitem questionar as decisões, abrindo o espaço público, sem o qual, como sustenta Lênio Streck a propósito do júri (que não motiva suas deliberações), não há espírito republicano. Ora, se as decisões do presidente forem finais e irrecorríveis, subtrairemos do exame judicial assuntos de interesse público. Parece que o STF pende para esse lado: mesmo naquilo que o presidente tem a prerrogativa constitucional de decidir, ele tem de se justificar, e essa justificação pode ser revista pela Corte Suprema. Essa tese é positiva.
Mas notem também que é delicada. Imaginemos que um dia se conteste a nomeação de um ministro de Estado, por inepto, ou a concessão de uma condecoração pelo chefe de Estado, por imerecida. Onde terminará o exame, pelo Judiciário, das decisões do Poder Executivo? Como ficarão a separação dos Poderes e o respeito à escolha, pelo povo, dos seus dirigentes? Questões difíceis, que espero sejam devidamente debatidas e decididas pelo STF.
PROFESSOR TITULAR DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA DA USP
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