Antes que seja tarde
MAURO CHAVES
O ESTADO DE SÃO PAULO - 25/09/10
Na obsessão de manter o poder, titereando quem inventou para a sua sucessão, não obedecendo a limite algum, no desprezo ao mínimo de escrúpulo que se exige da majestade de seu cargo, tratando com deboche exigências legais e decisões da Justiça, o presidente da República passou a torpedear a imprensa por esta ter trazido a público os indícios mais veementes de um amplo esquema de corrupção, nepotismo, tráfico de influência e crimes correlatos no núcleo central de seu governo, sua Casa Civil, estruturada e conduzida por aquela que se tornou candidata ungida à sua sucessão. É verdade que não tem sido só agora, na campanha eleitoral, que o presidente e seus áulicos - a exemplo do que se faz na Venezuela, na Argentina e na Bolívia - tentam amordaçar a imprensa, com vários projetos e mecanismos de um chamado "controle social" dos veículos de comunicação. Agora, porém, o chefe de Estado e governo foi longe demais, ao pregar, entre outras aberrações antidemocráticas, a extirpação de um partido político oposicionista e a assunção exclusiva, por sua pessoa e seu grupo partidário, da função de "opinião pública", que, nas democracias, a imprensa transmite e representa.
Se se confirmarem as projeções segundo as quais as forças governistas sairão das eleições, daqui a uma semana, com esmagadora maioria em ambas as Casas Legislativas federais, não se duvide de que mudanças substanciais nas garantias constitucionais da liberdade de expressão e de imprensa serão produzidas com singelas alterações de texto em dispositivos da Carta Magna vigente. Vejamos, a seguir, as que já devem ter sido redigidas por assessorias jurídicas de parlamentares federais integrantes da "opinião pública" oficial.
O artigo 5.º, IV, da Constituição, onde está escrito que "é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato", ficará assim: "É livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato das fontes."
O artigo 5.º, IX, onde está escrito que "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença", ficará assim: "É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, desde que fundamentada em informação correta e relevante interesse social."
O artigo 5.º, XIV, onde está escrito que "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional", ficará assim: "É assegurado a todos o acesso à informação correta e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional e indispensável à segurança comunitária."
O artigo 206, onde está escrito que "o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber", ficará assim: "O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, desde que estes não sejam incompatíveis com os ditames do interesse público e da justiça social."
O artigo 220, caput, onde está escrito que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição", ficará assim: "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo legítimo ou veículo autorizado, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição." No parágrafo 1.º desse mesmo artigo, onde está que "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social", estará que "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade jornalística em qualquer veículo idôneo de comunicação social". E no parágrafo 2.º, onde está que "é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística", estará que "é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística, salvo se necessária ao impedimento de distorções interpretativas que possam influenciar eleitores em períodos eleitorais".
O bem redigido Manifesto em Defesa da Democracia, encabeçado por dom Paulo Evaristo Arns e subscrito por uma plêiade de intelectuais, juristas e acadêmicos de alta credibilidade pública, lido na simbólica tribuna em frente às Arcadas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - a mesma em que há 33 anos Goffredo da Silva Telles lançou a Carta aos Brasileiros, marco da redemocratização do País -, é uma semente de resistência, cívica e apartidária, dos que não se submetem, por que vantagens sejam, à destruição dos valores que devemos repassar às futuras gerações - entre os quais está a noção de que "acima dos políticos estão as instituições, pilares do regime democrático". É preciso impedir que destrocem esses pilares, antes que seja tarde.
JORNALISTA, ADVOGADO, ESCRITOR, ADMINISTRADOR DE EMPRESAS E PINTOR
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