Macunaíma veste a toga
Claudio Weber Abramo
FOLHA DE SÃO PAULO - 25/09/10
O bacharelismo tão bem retratado por Mário de Andrade encontra no STF sua expressão mais acabada
O JULGAMENTO DO Recurso Extraordinário apresentado pelo agora ex-candidato Joaquim Roriz ao STF contra decisão do TSE que negou seu registro de candidatura ao governo do Distrito Federal com base na chamada "lei da ficha limpa" foi didático para entender por que o Judiciário brasileiro é tão ruim.
O fato de Roriz ter renunciado à candidatura, com isso esvaziando a questão, não desfaz o espetáculo a que se assistiu.
Há tempos todos os ministros sabiam que haveria empate e que a questão não seria resolvida. Apesar disso, empurraram o assunto com a barriga. Roriz (assim como todos os que se encontrem em situação semelhante) poderia concorrer.
Quando, afinal, o STF voltasse à questão, alguns desses políticos teriam sido eleitos. Não faltaria quem, no próprio STF, viesse argumentar que a corte não pode se superpor à "voz das urnas".
Se, a partir daí o eventual leitor deduzir que tudo não passa de teatro, acertará. O STF, como todo o Judiciário brasileiro, navega num dilúvio de palavras ociosas.
O jogo de cena começa, é claro, com os advogados. No caso de Roriz, juntaram numa mesma peça um bricabraque de alegações desconexas, na tática do que grudar grudou.
O que se extrai do palavrório indigente, das menções às "lições dos mestres", dos adjetivos encomiásticos empregados para se referirem uns aos outros, das intermináveis referências aos mesmos precedentes redigidos medievalmente, o que se extrai, dizia, são alegações no geral indigentes, às quais os ministros atribuíram respeitabilidade despropositada e aduziram suas próprias folhudices.
O fato de a maior parte dos argumentos não fazer sentido (o da presunção de inocência, o da renúncia como "ato jurídico perfeito" etc.) não impediu que cada ministro se estendesse (embora uns menos do que outros, cabendo salvar as duas ministras) em laboriosas explicações sobre por que o nonsense expresso pelos advogados era nonsense. Que um o fizesse, tudo bem. Os demais, contudo, poderiam referir-se ao primeiro e pau na máquina.
Mas não: os ministros são viciados naquele linguajar insuportável que, entre eles, passa por sapiência -em certos casos, brandido por quem exibe evidente dificuldade de leitura.
O bacharelismo tão bem retratado por Mário de Andrade na "Carta pras Icamiabas", enviada por Macunaíma à sua aldeia de origem, encontra no STF sua expressão mais acabada.
A doença não é apenas retórica, mas antes conceitual. O fiasco se alimentou da ideia esdrúxula, primeiro apresentada por Dias Toffoli e depois desenvolvida por Gilmar Mendes, de que "processo eleitoral" não seria algo que começa num momento e termina em outro, mas algo intangível, vago, inefável.
Na hermenêutica toffolo-mendesiana, "processo" não procede, existe atemporalmente. A partir disso, é claro que a inferência leva à inaplicabilidade da lei às eleições deste ano.
Não são necessárias 14 horas para desenvolver tal arremedo de raciocínio. E, caso os ministros de fato se preocupassem em discutir coisa com coisa, não seriam necessários mais do que alguns minutos para destruí-lo.
CLAUDIO WEBER ABRAMO é diretor-executivo da Transparência Brasil
Um comentário:
Somos todos vítimas desta situação ridícula. Esta prolixidade pretensiosa não tem razão de ser. Os profissionais de direito acham que demonstram cultura, mas na verdade criam na gente a dúvida se a justiça ficou esquizofrênica, dissociada da realidade.
Para os que dependem das decisões judiciais para resolver problemas de suas próprias vidas, esta atitude dos juízes é irritante. A impressão é que a lei e a realidade poderiam até se encontrar um dia, mas não antes de enterrar o cadáver do falso intelectualismo.
Os profissionais jurídicos estão tão viciados neste comportamento que muitas vezes sequer conhecem os fatos que estão discutindo. Discutem a lei apenas, como se ela existisse separadamente da realidade!?
O Judiciário Trabalhista e os Juizados Especiais (JECs) são os que mais se aproximam da realidade. Talvez seja porque os processos têm um impacto grande e direto no indivíduo. E também porque os juízes e os conciliadores são forçados a se encontrar com esse indivíduo, olhar no seu olho, interrogá-lo, tentar uma conciliação...
Não é surpresa que eles sejam tão criticados. Eles erram, às vezes não são técnicos na análise da lei e a descumprem, mas eles têm o mérito incrível de democratizar a justiça. E bem devagar, de baixo para cima, estes setores do judiciário vão mudar a nossa cultura.
Enquanto isto, a sociedade pode achar que entrar com uma ação na justiça ou consultar o oráculo pode dar o mesmo resultado.
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