Herança e comércio
Ruy Castro
FOLHA DE SÃO PAULO - 09/06/10
Exigências consideradas descabidas levaram a Bienal de São Paulo a retirar da mostra deste ano uma homenagem à falecida Lygia Clark. Tais exigências, envolvendo valores e conceitos, teriam sido feitas pela associação que controla os direitos da artista. Com isto, perde a Bienal, perdem seus frequentadores e perde a própria Lygia, que vê sua obra longe do reconhecimento que merece.
Lygia Clark não é a única artista plástica com a posteridade ameaçada pelo excesso de, digamos, zelo de seus responsáveis. Há pouco, houve o caso dos herdeiros de Volpi, que cobraram uma quantia desmedida pela reprodução de quadros do pintor no catálogo de uma exposição sobre... ele próprio. A exposição aconteceu, mas o catálogo saiu sem ilustrações. Esse tipo de exigência está envolvendo também os herdeiros de cantores, músicos e escritores.
Não se trata aqui dos processos e ameaças contra biografias de figuras públicas – um problema já grave e conhecido. Estamos falando do direito de a obra desses artistas circular sem o achaque de herdeiros, muitas vezes contra órgãos e instituições sem fins lucrativos. A justificativa é a do 'uso da imagem' – quando, na verdade, não passa de simples achaque.
Tal 'zelo', por mais cínico, poderia até justificar-se se esses familiares tivessem tido uma relação de amor com o parente ilustre. Nem sempre é o caso. Os filhos que hoje controlam a obra de um escritor ex-maldito, por exemplo, costumavam referir-se a ele como 'canalha', por não os ter reconhecido em vida ou lhes dado atenção paterna. E a herdeira de uma fabulosa cantora envergonhava-se, em criança, de ser sobrinha daquela mulher tão colorida e extravagante, que a fazia diferente das colegas.
Mas até o ódio e a vergonha se dissipam diante da fonte de renda em que esses parentes ilustres de repente se tornaram.
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