Olhar veterano
Miriam Leitão
O Globo - 19/05/2010
Você entra numa das salas da exposição Um Plano Real e vê prateleiras projetadas cobrindo as paredes de uma casa. No centro, uma televisão passando telejornais com velhas notícias de planos, confiscos, desabastecimento e números de uma inflação gigante. Conforme as notícias vão piorando, a sala começa a tremer e o espaço parece se encolher.
Julio María Sanguinetti, que foi presidente do Uruguai, disse que o real não foi um plano, foi um parteaguas.
Esse divisor de águas mudou o país.
— Há um Brasil antes e um Brasil depois do Plano Real. E como mudou o Brasil, mudou a América Latina. O plano marcou a presença do Estado como estabilizador e derrotou a memória inflacionária, histórica na América Latina, e endêmica no Brasil.
Sanguinetti foi o presidente da transição democrática do Uruguai. Felipe González foi presidente da Espanha na transição para a democracia estável que o país é hoje.
Ricardo Lagos foi presidente do Chile numa importante fase da consolidação do modelo econômico e político do país. A exposição Um Plano Real faz um passeio pelo passado econômico do país, mas os convidados falaram do presente e futuro.
No presente, a crise global em sua segunda fase. Para González, é a crise financeira que continua. É natural que ele pense assim, ainda mais vindo da Espanha. Os três propuseram mais e melhor regulação financeira internacional, do contrário nada, nem mesmo o gigantesco pacote europeu, será suficiente, e uma mudança radical no controle de gastos públicos.
Lagos acha que a Europa deveria ter feito como o Brasil, em 2000, que, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, proibiu os estados de aumentarem o endividamento sem autorização do governo central.
Lagos acha que o problema inicial da Europa é ter um Banco Central, uma moeda, e 16 políticas fiscais. Assim que houve a crise bancária, os governos abandonaram o acordo que limitava a 3% do PIB o déficit público: — Em relação à América Latina, a crise interrompeu os melhores seis anos da nossa história em termos de comércio internacional.
Entre 2003 e 2008, o valor do cobre subiu fortemente. Para evitar que isso levasse a um aumento de gastos, aprovamos uma lei fiscal que cria formas de poupar parte do ganho extra. Nesse período, a América Latina reduziu de 44% para 32% o percentual de pobres.
Sanguinetti se preocupa com os maus leitores de Keynes: — Para enfrentar a crise, os governos resolveram aumentar os gastos e dizer que eram keynesianistas. Eles dizem: eu gasto, gasto, gasto, sou keynesianista. Isso transforma Keynes numa caricatura.
Eu sei que é duro ler “Teoria Geral”. Me tomou muito tempo.
Mas, quem não o leu anda justificando descontrole fiscal como se fosse tese dele.
O ex-presidente uruguaio disse também que o que agravou o problema agora foi a ausência de responsáveis pelas decisões insensatas nos bancos. Ele acha que isso decorre de outro erro de interpretação teórica: — Sou um velho liberal.
Não um neo. Os neoliberais não entenderam direito o que Adam Smith disse e querem deixar tudo na mão do mercado.
Ricardo Lagos acha que será inevitável — é apenas uma questão de tempo — que haja uma tarifa sobre as emissões dos gases de efeito estufa. Ele diz que não haverá um preço de uma commodity, mas sim vários preços, dependendo do grau de emissão que estiver contido no processo de produção: — Por isso, o Chile que está com dificuldade de ter gás para o processamento do cobre não pode ter termelétricas a carvão, do contrário, estará indo para trás e tornando seu produto menos competitivo. Da mesma forma, não haverá um preço da soja, vai depender do grau de desmatamento que ela possa estar provocando.
Ele lembrou que o desmatamento representa 18% das emissões do mundo e 49% das emissões da América Latina. Por isso, acredita que a primeira tarefa coletiva da região é proteger a Amazônia.
Felipe González acha que a demografia é problema na Europa e na América Latina é vantagem.
— Nossa população está envelhecida. Tem alta expectativa de vida e poucos nascimentos. Isso cria várias dificuldades para nós, principalmente de financiamento da previdência. Na América Latina, há uma enorme juventude na base da pirâmide. Isso é uma vantagem, mas investir em educação é fundamental.
Sanguinetti disse que o Brasil concluiu com sucesso, nos últimos anos, três transições: a política, da ditadura para a democracia; a econômica, do regime de alta inflação para a estabilidade; e a partidária, da ausência de partidos estáveis para um quadro em que dois partidos têm se revezado no governo brasileiro há 16 anos.
O recado final que deixaram os ex-presidentes, diante da exposição que mostrava o horror econômico da inflação e a vantagem de se poder planejar o futuro, é que é preciso evitar as “utopias regressivas”, seja de esquerda, seja de direita, que podem revogar os avanços. Fernando Henrique encerrou alertando que tudo o que o país conquistou pode se perder. A inflação, como se sabe, é inimigo que vive à espreita
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