Limites na campanha
Merval Pereira
O Globo - 19/05/2010
A decisão do PSDB de entrar com um processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por propaganda antecipada da candidata Dilma Rousseff no programa do PT, do dia 13, é sinal de que prevaleceu o bom senso, em vez da proposta anarquista de que também os tucanos e seus aliados aproveitassem seus programas partidários para fazer a apologia do candidato José Serra.
Como o TSE só age quando instado por alguma queixa, o PT ficaria livre de punição desta vez, abrindo caminho para um acordo tácito com o PSDB.
Não foi outra, por sinal, a proposta que o presidente do PT, José Eduardo Dutra, fez ao senador Sérgio Guerra, presidente do PSDB, logo no início da chamada pré-campanha.
A pretexto de não permitir a judicialização da campanha sucessória, Dutra propôs que os dois partidos abrissem mão de recorrer ao TSE.
Com isso, estariam os próprios partidos estabelecendo os limites da campanha eleitoral, ou, por outro lado, decidindo que não há limites, fazendo tábula rasa da legislação existente.
Seria a oficialização do vale-tudo eleitoral, um retrocesso institucional digno de nota.
Depois que o próprio presidente Lula “ancorou” o programa do PT que apresentou a candidata Dilma Rousseff como a verdadeira responsável por todos os êxitos do seu governo, transformandoo em mero coadjuvante, quebrando claramente as regras que visam a dar um equilíbrio à disputa eleitoral, também o PSDB se viu tentado a fazer o mesmo.
Recorrendo à Justiça Eleitoral mais uma vez, os tucanos indicam que continuam querendo estabelecer limites legais à atuação de Lula, em cuja popularidade repousam as esperanças de eleger Dilma.
Pedindo que o PT seja punido com o cancelamento do programa partidário do segundo semestre de 2011, o PSDB sinaliza que, mesmo sendo a punição inócua em termos eleitorais, prefere marcar posição ao exigir o cumprimento da lei.
A chamada “judicialização” da política, esse novo fenômeno que leva em algumas situações à “politização” da Justiça, se generalizada, poderia criar condições para impasses institucionais.
Em todos os casos recentes, no entanto, os tribunais superiores foram chamados a decidir por consultas dos próprios políticos, o que retiraria o caráter de ingerência de um poder sobre o outro.
A “judicialização” da campanha presidencial reflete sobretudo o esforço da oposição de criar constrangimentos para o presidente Lula, para que, quando a campanha realmente começar, depois da Copa do Mundo, ele esteja menos à vontade para quebrar as regras da lei.
Essa guerrilha judicial é consequência da participação ativa de um presidente extremamente popular disposto a tudo para eleger sua candidata.
Também a oposição é acusada pelo PT de infringir a lei, e esta não foi a primeira vez em uma campanha que um partido exorbitou no programa partidário.
O PSDB teve seu programa suspenso na campanha de 2006 pela mesma razão: usar o tempo partidário para fazer apologia de seu candidato, naquela ocasião Geraldo Alckmin.
Nesta campanha, no entanto, têm sido do partido governista as iniciativas que se chocam com a legislação eleitoral, e as multas se tornam mais graves por que foram dadas ao próprio presidente da República, coisa que nunca acontecera anteriormente.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teve uma participação exemplar na eleição de 2002.
A oposição alega que assim procedeu porque não teve condições de participar da campanha, já que naquela ocasião o candidato tucano, José Serra, tentava se separar da imagem do governo, que era mal avaliado.
Essa é uma ilação venenosa da oposição da época que não se coaduna com a transição de poder verdadeiramente republicana que ele patrocinou.
Seja como for, nesta campanha eleitoral, o presidente Lula tem todas as condições de trabalhar abertamente por sua candidata, que só existe em termos políticos devido ao apoio que recebe dele.
Justamente por isso, o TSE tem que atuar com a maior firmeza para manter o clima de igualdade entre os candidatos.
Uma consequência da crescente importância que os tribunais vêm ganhando nas disputas políticas é justamente a facilidade com que os juízes se pronunciam em público.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, que assumiu um dos cargos do TSE, já antecipou sua posição ao comentar que fica “muito triste” ao ver um programa como o do PT que, segundo ele, fez “apologia de uma pré-candidata à Presidência”.
Para o ministro do Supremo, o presidente deveria adotar “postura equidistante”, e o contrário, como está acontecendo, “é abandono de princípios, perda de parâmetros, inversão de valores”.
Mesmo que esteja 100% certo — e eu acredito que esteja —, o ministro Marco Aurélio Mello não poderia se pronunciar previamente sobre um caso que vai julgar, assim como o presidente da República não poderia defender tão abertamente uma candidata à sua sucessão, utilizando os poderes que tem — como na cadeia nacional do programa de 1º de Maio para alavancar sua votação.
Mas, com a exorbitância do presidente, o sistema de pesos e contrapesos entre os poderes só pode ser exercido por um membro de outro Poder, e nos últimos tempos tem sido o Judiciário que vem exercendo esse papel.
Sinal de que a legislação eleitoral está sendo ultrapassada pelos fatos e pela tecnologia, e precisa ser revista para que não reste a sensação de que a democracia brasileira é de fancaria.
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