Desigualdade induzida
O GLOBO - 03/04/2010
O século XX assistiu ao fenômeno do crescimento das cidades e da formação das megalópolis. Para bilhões de pessoas, a vida urbana permitiu o acesso à educação, à saúde, ao trabalho e ao lazer, sustentando espetacular aumento da longevidade. A cidade se constituiu como o lugar da modernidade. Em busca desse lugar, o Brasil, em cem anos, passou de 6 milhões a 160 milhões de citadinos.
O desenvolvimento nacional é urbano, mas assimétrico. A cidade, que incluiu, também apresenta índices inaceitáveis de desigualdade social.
Recente estudo realizado entre 63 países em desenvolvimento, divulgado pela ONU/Habitat, situa cinco cidades brasileiras entre as vinte socialmente mais desiguais do mundo. Goiânia, no rico CentroOeste, é a mais desigual entre as brasileiras, seguida de Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília e Curitiba.
Ironicamente, três delas são novas capitais planejadas.
A que atribuir essa marca? A desigualdade social intraurbana, é claro, é fundada na estrutura econômica e política da sociedade.
Mas também razões urbanísticas respondem pela desigualdade. Entre estas, devemos considerar a expansão da cidade em baixa densidade populacional, carente de infraestrutura e serviços.
Construir a casa, mesmo precariamente, é o que a família pode fazer.
Ela não pode construir cidade.
Sem política habitacional e urbana, sem financiamento, as famílias são compelidas a construir nas fraldas mais distantes. Assim, nossas metrópoles se apresentam como um oceano de assentamentos precários, desprovidos de cidade, de onde, a cada manhã, partem milhões de trabalhadores em condições desumanas de transporte público, com perdas gigantescas de dinheiro, de força de trabalho e de vida, em busca de sua inserção na sociedade contemporânea.
A exponencial expansão da cidade seria consentânea com a ideia de um futuro infinitamente próspero.
Nos anos sessenta, era possível pensar assim: a população dobrava em pouco tempo, as cidades inchavam, a economia parecia milagrosa e o futuro superaria as dificuldades.
As teorias urbanísticas compartilharam essa crença. A cidade do automóvel, extensa, substituiria a cidade contida, do transporte sobre trilhos. Porém, mesmo nos países ricos, de onde se originou esse modelo, sua insustentabilidade está demonstrada. Infelizmente, expansão urbana e desconcentração populacional são atributos valorizados entre nós. Novas estradas e novos parcelamentos são aplaudidos ainda que indutores da cidade insustentável — isto é, cada vez mais cara e mais pobre.
No Rio, por exemplo, embora a função logística seja suficiente para justificar a construção do Arco Metropolitano (estrada que ligará a petroquímica de Itaboraí ao porto de Sepetiba, passando ao fundo da Baía de Guanabara), ele é sugerido como oportunidade para a implantação de novos bairros e para acolher centenas de milhares de habitantes. Tratase de insistir no modelo expansionista.
Porém, desde os anos 80, o Grande Rio é a metrópole brasileira que menos cresce em população, estando virtualmente estável demograficamente.
Nessa situação, seria legítimo esperar-se, em prazo razoável, universalizar um padrão de urbanidade compatível com nossa contemporaneidade.
Todos sabemos que a carência de infraestrutura, de transporte adequado e de serviços públicos dificulta aos pobres a inserção na educação, no trabalho e no desenvolvimento.
Expandir a cidade, assim, será um reforço à desigualdade e pereniza a injustiça.
O Rio pode dispensar a expansão em novos parcelamentos, mesmo ricos.
Estes também aumentam os custos urbanos. A cidade tem suficientes territórios intraurbanos a ocupar, inclusive vazios centrais.
Lugares a serem recuperados, retirados da anomia, bairros deprimidos que, no entanto, por sua localização, história e cultura podem perfeitamente voltar a ter vitalidade. Inúmeros bairros privilegiados têm ampla condição de abrigar a emergente classe média. Nesse sentido, a região das Vargens Grande e Pequena, na Barra, deveria permanecer tal como definida no Plano Lúcio Costa, destinada a sítios e chácaras. Lembremos que sua área equivale a 25 vezes os bairros de Copacabana e Leme somados. Como pode interessar à cidade tal expansão? O futuro da cidade passa pela qualificação continuada, estratégica, de seu espaço urbano-metropolitano.
É um desdobramento impositivo à capacidade demonstrada pelo sistema urbano brasileiro de incluir milhões de cidadãos. Faz parte de seu desafio, agora, combater a desigualdade.
SÉRGIO MAGALHÃES é arquiteto.
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