sábado, abril 03, 2010

MANOEL CARLOS


REVISTA VEJA - RIO

Três momentos



Na minha infância e adolescência, a Páscoa não era festejada com egoísmo, como mais tarde passou a acontecer (e até hoje assim é) em quase todas as famílias, em que cada membro — criança ou adulto — devorava seu ovo particular. Eram seis filhos? Eram então seis ovos. Conheci pessoas que guardavam o chocolate no quarto, num armário fechado a chave. Todos os dias, depois do almoço e do jantar, iam até lá e partiam um pedaço, que comiam escondidas de todos. Não. Na minha infância e adolescência dividiam-se o prazer e a alegria entre parentes, amigos, vizinhos e mesmo desconhecidos que passavam pelo bairro em que morávamos, pedindo um prato de comida, um agasalho, um dinheirinho para o cigarro e a cachaça.

Meu pai comprava um ovo grande, bonito, e colocava no centro da mesa. E todos nós e mais as pessoas que passavam pela nossa casa tinham acesso a essa gostosura. Era chegar e pegar um pedaço. Sem formalidade e sem desejo imoderado. E o grande ovo ficava ali quase sempre uma semana inteira, saboreado sem pressa.

Meus pais eram generosos e até pródigos, sem ser ricos. Éramos apenas e tão simplesmente da classe média, situados entre os que eram chamados de pobres e os que eram chamados de ricos. E naquele tempo — acreditem — mesmo os pobres tinham o suficiente para viver, e podiam, desse modo, ajudar o paupérrimo, o miserável, o desprovido de tudo.
* * *

Sempre que uma pessoa morria, fosse qual fosse a vida que levara até o último suspiro, meu pai dizia: viveu como escolheu viver. Com isso ele concedia ao falecido o gozo pleno de seu livre-arbítrio. Nada de fatalidade, de destino. Não. Meu pai, tão crente em Deus e cumpridor de tantos deveres religiosos, não via a mão do Criador conduzindo nossa vida por este ou aquele caminho. Lembro que quando morreu de cirrose, em meio a muito sofrimento, o marido de uma empregada nossa, bebedor contumaz, meu pai comentou sem suspirar:

— Ele quis assim. Não foi por falta de aviso, nem de ajuda. Até hospital eu me ofereci para pagar, se ele quisesse se tratar.



Não sei se meu pai tinha razão. Nem saberei nunca. Minha mãe pensava e agia de maneira diferente, até oposta. Ninguém, para ela, era culpado de coisa alguma; nem mesmo da vida que levava, do mal que fazia, dos maus passos que dava. Diante disso, para ela tudo era perdoável no ser humano. E, também por essa razão, o inferno era uma ficção. Ela só aceitava a existência do céu e de um leve purgatório, uma espécie de spa das almas, que ali ficavam por algum tempo, lavando-se de seus pecados. Para minha mãe, ninguém cometia um pecado, mas uma falta. E um gesto ou uma palavra de ódio era sempre tratado como uma fraqueza momentânea do espírito. Para minha mãe, ninguém morria. Ia para Deus.
* * *

Nunca tive o hábito de ler meu horóscopo nos jornais e revistas, e jamais encomendei um mapa astral. Na verdade, nunca acreditei na influência dos astros sobre as pessoas. Quando vivi um tempo nos Estados Unidos, fiquei bobo ao ver como os americanos levam a sério os presságios do dia. Conheci gente que não saía de casa, nem mesmo para o trabalho, se as previsões dos astros, para aquele dia, fossem negativas, alertassem para possíveis acidentes etc. Concluí que os americanos acreditam em tudo.

A propósito disso, ocorre-me a frase de Umberto Eco, no livro 
O Pêndulo de Foucault: “As pessoas nascem sempre sob o signo errado. E estar no mundo de forma digna significa corrigir dia a dia o próprio horóscopo”.

Feliz Páscoa.

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