REVISTA ÉPOCA
sabella e a culpa coletiva
RUTH DE AQUINO
Fogos de artifício, risos e aplausos. O que leva a massa a comemorar com felicidade a comprovação de um crime monstruoso contra uma menina de 5 anos? Por um lado, a vontade de dizer: fiz parte do júri popular que condenou o pai e a madrasta. Mas Isabella também desperta a consciência do medo de si mesmo. Milhões de crianças sofrem maus-tratos em casa. Tapas, beliscões, chutes, socos, safanões, queimaduras, chineladas, abusos sexuais.
E a maioria desses dramas continua oculta. Alguns milhares de casos chegam a hospitais e delegacias, denunciados por vizinhos, médicos e professores. Ou devido a complicações em ferimentos e fraturas. Como classificar de “morte acidental” um crime contra uma criança indefesa? Um adulto que descarrega sua força, seu ódio e frustrações contra um bebê ou uma criança deveria saber que esganar um filho pode asfixiá-lo.
No Brasil, cerca de 18 mil crianças são vítimas de violência doméstica por dia, segundo a Sociedade Internacional de Prevenção de Abuso e Negligência na Infância (Sipani). Parentes próximos – mães em primeiro lugar, pais, madrastas e padrastos – causam 80% das agressões físicas contra crianças. De hora em hora, morre no mundo uma criança queimada, torturada ou espancada pelos pais ou responsáveis, segundo o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância.
Como definir “maus-tratos” contra uma criança? Palmadas são maus-tratos? Um beliscão que deixa marca vermelha é abuso? Puxar a criança desobediente pela orelha é crueldade? Dar uma chinelada ou bater de cinto sem causar hematoma é repugnante? Agarrar o bracinho infantil com raiva até deixar a marca dos dedos adultos é covardia? Ou os “maus-tratos” são agressões mais graves, como queimar com cigarro ou ferro, quebrar os ossos com pancadas, esbofetear o rosto e estuprar?
Como mãe, diria que todas essas atitudes são maus-tratos inadmissíveis. Pais não são perfeitos. Nós explodimos. Mas quem recorre à força contra crianças deve se tratar. A agressão contra os filhos, não importa o nível, é um mal que precisa ser combatido com terapia, remédios ou o que seja. Antes que se torne um vício ou ocorra uma tragédia. Evitam-se assim traumas para toda a vida. Famílias agressoras produzem filhos violentos.
Mais chocantes que qualquer pesquisa são as cenas que o médico Jorge Paulete, legista aposentado e professor de medicina legal, testemunhou: “Quanto mais deslavada a mentira dos pais, pior. Eu me lembro de uma criança de 2 anos toda quebrada. E a mãe dizia: ‘O senhor sabe, é que ela tentou trepar na geladeira para pegar o pinguim’. Vi criança com bolhas horríveis na boca, porque os pais, irritados com um palavrão, tinham esfregado malagueta crua nos lábios. Vi criança queimada porque tinha feito xixi. Os pais resolveram sentá-la na chapa do fogão para ela aprender a nunca mais fazer isso”.
A estatística da surra sem marcas não existe. É uma doença social sem registro. Muitos pais e mães que condenam os Nardonis como monstros cometem pequenas atrocidades sem perceber.
“A reação dos pais a uma desobediência do filho depende do bem-estar do casal”, diz a terapeuta familiar Roberta Palermo. “Se a mãe está tranquila, e o filho joga um copo de vidro no chão, ela dá uma bronca, explica que está errado e o ajuda a limpar. Se ela se irritou no trabalho ou com o marido, perde a paciência e o controle.”
Para Roberta, o estresse é o grande vilão. Por isso, há menos agressões a filhos entre os ricos. A mãe que conta com ajuda, creche e babá tem mais paciência. A mãe pobre e sobrecarregada fica mais nervosa e não sabe se impor a não ser pela agressão. Lemos histórias de mães que acorrentam os filhos em casa para sair para trabalhar. Além do estresse, há o alcoolismo. O pai operário que chega tarde e cansado depois de beber dificilmente será sensato com os filhos.
Todos precisam fazer a sua parte, denunciar, assumir e colaborar. Não dá para dormir em paz apenas porque os assassinos de Isabella foram considerados culpados.
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