sábado, março 06, 2010

ROBERTO POMPEU DE TOLEDO


REVISTA VEJA
Roberto Pompeu de Toledo

No terremoto, e fora de casa

"Funcionários do hotel aconselham a entrar. Há rumores 
de arrastões na rua. Tensão no grupo. Que é pior, numa
hora dessas: assalto ou um teto sobre a cabeça?"

O terremoto começa dentro da gente. Sensação de tremor, náusea. "Que estará ocorrendo comigo?", perguntava-se a professora e crítica literária Marisa Lajolo, uma das integrantes da delegação brasileira no congresso de literatura infantil que ocorria em Santiago do Chile. Era a noite de sexta para sábado. Da cama Marisa via o campanário da Igreja de Santo Antonio, enquadrada na janela do hotel em que se hospedava. De repente, as luzes do campanário se apagaram. Foi um dos primeiros sinais de que... Não, não é comigo. Alguma coisa está acontecendo no mundo exterior.
O relato de Marisa Lajolo ao colunista mostra como vão se sucedendo os dados até construir na mente sonolenta a consciência do terremoto. Barulhos estranhos no teto. Na parede. Como pode um barulho na parede? Barulho de vidro se quebrando, será um copo? Um barulhão enorme no banheiro. Marisa abre a porta e vê os hóspedes descendo pelas escadas. O hotel possui sistema próprio de geração de energia e as luzes estão acesas. Isso contribui para que a retirada se dê sem pânico. Ela veste uma roupa e enrola um lençol por cima. O barulhão no banheiro, saberá depois, era dos azulejos descolando-se das paredes e despencando no chão.
Os neófitos em terremotos pagam pela inexperiência. Marisa aprenderá que demorou a sair da cama. Enquanto ainda não é possível abandonar o prédio, deve-se procurar abrigo sob o batente de uma porta. No próximo terremoto, ela será mais expedita. Enfim na rua, abraços emocionados. Ao se reverem, o grupo brasileiro e os demais conhecidos do congresso sentem o alívio de se saberem vivos e bem. A terra ainda treme, são os repiques secundários do terremoto. Mas o que agora chama mais atenção são as contínuas trombadas de automóveis. Os semáforos não funcionam, e os motoristas estão nervosos e apressados. Os barulhos das trombadas, somados aos outros barulhos ouvidos durante a noite, consolidarão em Marisa a impressão de que, da experiência de ter vivido um terremoto, lhe ficará sobretudo a memória auditiva.
Na rua, e, pelo sim, pelo não, a boa distância do prédio, muitas pessoas ainda vestem pijama. Marisa não, mas guarda como resquício da cama o lençol enrolado no corpo. Transcorre um tempo e os funcionários do hotel, sempre gentis, sempre prestativos, aconselham a passar para dentro. Há rumores de arrastões ocorrendo nas ruas. Tensão no grupo. Que é pior, numa hora dessas: assalto ou um teto sobre a cabeça? Acaba-se acatando o conselho dos funcionários. Eles devem saber o que fazem. No saguão do hotel aglomera-se uma pequena multidão, grande parte de pijama. Aos poucos as pessoas vão criando coragem para subir, rápido, e pegar suas coisas. O prédio parece firme e a terra, mais calma. O hotel vai mais tarde acomodar os hóspedes nos andares mais baixos. Não é a normalidade ainda, longe disso, mas é um começo de.
No Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, os chilenos espalham-se pelas poltronas, pelo chão, sobre as esteiras ociosas dos guichês de check-in. Eles esperam a reabertura do aeroporto de Santiago. A foto publicada na Folha de S.Paulo mostra os bilhetes que colaram na parede: "Tenemos hambre y frío", "Help", "Lula, ayúdanos", "Piñera, llévanos a Chile". Eles se constituem num paradoxal tipo de vítima do terremoto: o dos apanhados fora dele. Nenhum teto lhes caiu em cima, mas encontram-se sob o peso de ter sido surpreendidos em lugar distinto do exigido pela hora. A preocupação central são os parentes, os amigos, mas não é só. A pátria como um todo, nessa circunstância, dói e faz falta.
Os brasileiros no Chile, igualmente impedidos de fazer a viagem de volta, viviam a situação inversa de ser apanhados em apuros longe de casa. Os professores do congresso de literatura são pessoas acostumadas às viagens, vários já viveram no exterior, mas essa não é situação para padecer em plaga estrangeira. A terra já não treme, estão bem tratados no hotel, não falta comida, até banho não falta, mas as horas passam devagar e vazias. Enfim, na noite de segunda para terça-feira, um avião da FAB os resgata, a eles e outros brasileiros. A alegria da repatriação domina o grupo. Marisa, cujos ouvidos ainda ecoavam os sons da noite do terremoto, é recompensada pela "voz brasileira e tranquila" do comandante que os recebeu a bordo. Mais um pouco, e a alegria vira euforia. Até a Embraer é aplaudida, pela fabricação da aeronave que os transporta. Belos aviões tem fabricado essa tal de Embraer.

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