REVISTA VEJA
J.R. Guzzo
Opção preferencial por ditaduras
"A política externa brasileira pode ser um primor de independência, mas seu resultado prático mais visível foi tornar o Brasil, ao longo do governo Lula, o grande amigo do que existe de pior no mundo"
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não teria ido longe na vida se tivesse tentado fazer no Irã, o mais recente dos grandes amigos de seu governo, a carreira de sindicalista e militante de oposição que fez aqui no Brasil; provavelmente teria sido condenado à morte e mandado para a forca, solução que o regime iraniano adota, como procedimento regular, para lidar com líderes sindicais, adversários políticos e criadores de problema em geral. O Irã é hoje, depois da China, o país que mais aplica a pena de morte; só nos oito primeiros meses do ano passado, último período do qual existem estatísticas, executou 320 pessoas, metade delas nos cinquenta dias que se seguiram às eleições de junho, denunciadas como uma maciça operação de fraude. Nos processos por crimes políticos, os réus não têm direito a advogado. Também não podem reclamar de violências sofridas na prisão; o Irã se recusa, simplesmente, a aprovar qualquer lei proibindo a tortura. A polícia dissolve atos de protesto investindo com motos contra os manifestantes. Oposicionistas são punidos com expulsão da universidade, cassação de direitos trabalhistas e, no caso de dissidentes religiosos, com a destruição de seus templos.
É esse o regime em favor do qual o Brasil tanto vem brigando ultimamente, como teve a oportunidade de deixar claro mais uma vez, na semana passada, durante a visita ao país da secretária Hillary Clinton, a chefe do serviço diplomático dos Estados Unidos. Lula, que em novembro recebeu em Brasília o presidente do Irã e se prepara para ir visitá-lo em maio, já avisou ao mundo que viaja para onde quiser e que não tem de submeter seus planos de voo à aprovação prévia dos Estados Unidos. É mais uma dessas coisas que não se entendem direito, porque não há ninguém dizendo o contrário, nem lá nem aqui. O que os americanos acham, como muitos outros países, é que o Irã representa algo pior que um regime delinquente, apenas; é um regime delinquente a caminho de ter uma bomba atômica e que se recusa a abrir seu programa nuclear a qualquer inspeção internacional séria. Deveria, portanto, receber as sanções legais previstas para esse tipo de conduta. É um ponto de vista.
O Brasil tem o direito de ter um ponto de vista diferente. Tem o direito, também, de manter boas relações com todos os países, e não apenas com os que são considerados virtuosos. Mas o que realmente importa, no caso, não é a divergência de posições com os Estados Unidos e outros países, ou mesmo o debate para saber se o Irã está ou não construindo a bomba e se vai jogá-la em cima de alguém. O que chama atenção é o fato, cada vez mais claro, de que a política externa brasileira pode ser um primor de independência, mas seu resultado prático mais visível foi tornar o Brasil, ao longo do governo Lula, o grande amigo do que existe de pior no mundo em matéria de regimes celerados. É como se o Brasil, nas suas relações com os demais países, fizesse uma pergunta-base: é ditadura ou não? Se for, tem a nossa preferência.
As declarações mais recentes dos pensadores da nossa política externa a respeito do assunto não são de animar. O diplomata Samuel Pinheiro Guimarães Neto, hoje à frente da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, já advertiu que é preciso tomar cuidado com o que chamou de "direitos humanos ocidentais"; trata-se dos mesmos direitos que todo mundo conhece há mais de 200 anos, mas que, em sua opinião, são impostos pelas "grandes potências" para defender seus próprios interesses. Outro mau momento foi a recente visita do presidente Lula a Cuba, que coincidiu com a morte, após uma longa greve de fome, do operário Orlando Zapata, condenado a 25 anos de cadeia por fazer oposição ao governo. Para o Brasil, tudo bem. "Há problemas de direitos humanos no mundo inteiro", comentou o assessor presidencial para política externa, Marco Aurélio Garcia. Lula, por sua vez, não foi capaz, com toda a sua influência junto ao governo cubano, de dizer uma única palavra em favor do companheiro Zapata; embora houvesse uma carta aberta pedindo sua intervenção, reclamou, irritado, que ninguém lhe escreveu nada a respeito. O que ele queria? Os presos em Cuba não têm acesso a e-mail, carta registrada ou serviço de entrega rápida dos correios. Lula achou o episódio "lamentável". Mas deu a impressão de que estava aborrecido, mais do que tudo, com o próprio Zapata – por ter feito a greve de fome e por não ter tido a consideração de esperar, antes de morrer, que a visita acabasse.
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