Os 12% de Héracles
FOLHA DE SÃO PAULO - 17/02/2010
A Grécia tem necessidade de apertar a política fiscal em meio a forte recessão, desafio digno do 13º trabalho de Héracles
D IZIA ARISTÓTELES que a tragédia se caracteriza, entre outras coisas, pela mudança da fortuna do herói, consequência de erro (intencional ou não) cometido no passado, por meio da qual o herói trágico e a audiência obtêm uma revelação acerca da natureza humana (ou da vontade dos deuses). Não me escapa a ironia (outra palavra grega) de essa definição encampar de forma tão completa os desenvolvimentos recentes na eurolândia. A Grécia passa por uma mudança de fortuna, resultado de erros passados, e, como na tragédia, a queda traz uma revelação sobre a natureza da crise.
O problema se manifesta como um aumento considerável dos prêmios de risco associados à dívida helênica. Enquanto escrevo este artigo, o custo de proteção contra um possível calote grego gira em torno de 350 pontos-base (3,5% ao ano para o prazo de cinco anos), vindo de valores ao redor de 100-150 pontos na segunda metade de 2009. Em comparação, o prêmio de risco no caso do Brasil para o mesmo prazo é próximo a 140 pontos, enquanto o argentino é de 1.100 pontos. Esses preços sugerem que mercados consideram haver uma probabilidade razoável de um default grego nos próximos cinco anos.
A razão para tal desempenho parece clara. Enquanto outros países da eurolândia fizeram um esforço para reduzir o endividamento do setor público (a dívida média da região atingiu 66% do PIB no final de 2007), a Grécia entrou na crise com uma dívida próxima a 100% do PIB, ou seja, praticamente sem espaço fiscal para incorrer em novos deficit. Apesar disso, em 2009 o deficit público alcançou 12% do PIB, valor não apenas elevado mas, principalmente, muito superior ao divulgado originalmente pelas autoridades gregas (3,7% do PIB), levando o próprio governo a admitir que, em primeiro lugar, o país sofre de um "deficit de credibilidade".
Em razão do descaso fiscal anterior, a Grécia enfrenta agora a necessidade de apertar sua política fiscal em meio a forte recessão, sofrendo ainda com o aumento do custo de capital associado à elevação do risco-país no contexto de uma taxa fixa de câmbio. Em outras palavras, o país está condenado a uma política fiscal pró-cíclica, por conta da falta de cuidado anterior. Nem no Hades, onde Tântalo passa fome e sede em meio à água e iguarias e Sísifo empurra continuamente sua pedra morro acima, seria possível imaginar punição mais rigorosa. Reduzir o deficit nessas condições seria um desafio digno do 13º trabalho de Héracles.
Que o diga a Argentina, que, sob circunstâncias semelhantes, em 2001, tentou heroicamente ajustar suas contas, embora sua dívida fosse, a bem da verdade, consideravelmente menor do que a grega. Por outro lado, nossos vizinhos não faziam parte de um clube exclusivo, disposto, aparentemente, a financiar o país nesse período delicado, desde que os gregos se comprometam com um pacote duríssimo de austeridade fiscal.
E, após a catarse, o que se revela para a audiência? Acima de tudo que países ganham e perdem facilmente os favores do mercado. Quando a fortuna muda, não falta quem aponte os diversos erros cometidos nos anos de felicidade como motivo para a tragédia recente. Descuidos fiscais e truques contábeis, que parecem modestos nos anos de felicidade, têm o mau hábito de voltar para nos assombrar quando a maré vira, fato que não deveria ser esquecido em nenhum momento por nenhum gestor de política econômica, mas frequentemente é.
À luz disso, só nos resta concluir, como Ésquilo: "Não considere um homem feliz até que morra". Os antigos helenos sabiam das coisas.
ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 47, é economista-chefe do Grupo Santander Brasil, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.
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