terça-feira, janeiro 12, 2010

NAS ENTRELINHAS

Chamem o STF

Alon Feuerwerker
Correio Braziliense - 12/01/2010

Adotar o ponto de vista da vítima de violência é a única opção moralmente aceitável. Mas na política isso não funciona. Não há governos humanistas. Se tentarem vender algo parecido, não compre. É falsificado


Por que a tortura é crime hediondo? Porque é ato de violência — física ou psíquica — deliberada contra a pessoa indefesa. Mas, infelizmente, “hediondo” não deve ser lido como inaceitável por todos. Em certos casos a tortura até consegue o aval de alguns. Há por exemplo a dúvida clássica: é tolerável a tortura para colher informações de um prisioneiro que sabe onde, quando e como vai ser cometido um atentado terrorista planejado para matar milhares de inocentes?

Se me fizerem tal pergunta, a resposta virá rapidamente e será clara. Não, a tortura não é justificável em nenhuma circunstância. Tenho a convicção. Mas não precisei de maior coragem para chegar a ela. Meu papel é só escrever colunas sobre assuntos da política. Não fui eleito, nem nomeado, para tomar decisões políticas. Daí minha resistência a emitir aqui certos juízos de valor. Eu prefiro analisar. Para julgar, já existem duas Justiças: a dos homens e a de Deus.

Situações de guerra envolvem alternativas moralmente complicadas. O grupo de guerrilheiros que você comanda está em retirada na selva, tentando escapar de um cerco. Aí, por azar (ou sorte), vocês capturam um combatente inimigo desgarrado. Vão fazer o quê? Levar o prisioneiro junto, arriscando ainda mais a segurança da operação de retirada? Vão deixá-lo para trás, com inteligência (informação) que talvez mais adiante vai ser usada contra vocês? Ou vão executá-lo?

Eu carregaria o prisioneiro comigo. Pois matar alguém indefeso é bem pior do que torturar. O torturado que sobrevive tem a chance de caçar quem o torturou. Caçar para pedir ou fazer justiça, dependendo das circunstâncias. Quem foi morto, não tem. Mas, de novo, essa opinião não me custa nada. Já se eu fosse o oficial da historinha hipotética do parágrafo anterior, e se minha tropa viesse a ser dizimada por causa do que eventualmente decidi, teria que responder — caso sobrevivesse — pelo meu ato.

Qual é a saída? O relativismo? Não. A humanidade evolui, e a pressão pelo respeito aos direitos humanos é um vetor do processo civilizatório. Entretanto, a esfera política não é a mais indicada para operar o tema. Por definição. Vista a coisa pelo ângulo do poder, é fácil distinguir entre o crime hediondo aceitável e o inaceitável. A distinção será sempre política. Na primeira categoria estarão os atos dos nossos amigos. Na segunda, os dos nossos inimigos. O que isso tem a ver com “lutar pelos direitos humanos”? Nada. É só luta política.

Eis uma contradição (há outras) que alimenta o stress por causa do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), decretado pelo presidente da República. Na abordagem da violência, a única opção moralmente aceitável é endossar o ponto de vista da vítima. Mas na política não é assim que funciona. Não há um governo humanista (porque o humanismo ou é 100% ou é de mentirinha). Se tentarem vender algo parecido, não compre. É falsificado.

Daí que talvez seja preciso discutir melhor a Comissão da Verdade, proposta no PNDH. Do jeito que está no texto, ela corre o risco de virar um apêndice do governo, de se interessar seletivamente pela parte da verdade que é conveniente ao poder e degenerar para um instrumento de pressão e vingança políticas. E ainda que em alguns casos o desejo de vingança possa ser legítimo (de um ângulo moral), isso não faria bem à democracia brasileira.

É um debate para o Congresso Nacional, já que o Palácio do Planalto teve pelo menos a sabedoria de definir que a comissão será criada por lei.

Aliás, no estado de direito as coisas devem sempre andar conforme a lei. E felizmente a Ordem dos Advogados do Brasil provocou lá atrás o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei de Anistia. Inexistem óbices legais para que se abra toda a história do período ditatorial. A dúvida é se a legislação permite processar hoje quem cometeu na época crimes que agora a lei considera hediondos.

À primeira vista não tem muita lógica jurídica, mas a Constituição é o que o STF decide que ela é. Não sou eu que digo, foi o ministro Marco Aurélio quem disse. Eu estava lá e ouvi.

Então, se têm tanto poder, que os ministros da mais alta instância descasquem o abacaxi.

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