Parcerias estratégicas
O GLOBO - 21/01/10
A disparidade de preços do Rafale francês em licitações em andamento em países como a Índia e os Emirados Árabes está introduzindo uma nova variável na concorrência brasileira para a compra dos caças da FAB, que já estava na berlinda diante da informação de que a Aeronáutica prefere o avião sueco Gripen, por ser o mais barato de todos. A explicação oficial de que a compra brasileira seria decidida não por critérios de preço, mas sim por adequação a uma estratégia de política externa brasileira, fica abalada pela diferença de preços oferecido pela França ao Brasil e aos outros países
A Índia está comprando nada menos que 126 aviões pelos mesmos US$ 10 bilhões que o Brasil está pagando por 36, sendo que desses 108 serão produzidos na Hindustan Aeronautics no próprio país, com programa de transferência de tecnologia até onde se sabe igual ao prometido ao Brasil.
Os Emirados Árabes, por sua vez, estão comprando 60 jatos Rafale, num negócio estimado entre US$ 8 a US$ 11 bilhões.
A prevalecer essa diferença de preços, estaríamos diante de um “parceiro estratégico” que se aproveita de nosso interesse para cobrar mais caro pela parceria.
O governo brasileiro, que já deixou claro, através do próprio presidente Lula, sua inclinação para comprar os jatos da empresa Dassault, resolveu fazer uma consulta formal à França para saber quais são as diferenças entre o pacote brasileiro e os outros que justificariam preços tão desiguais.
A única explicação seria o pacote tecnológico, mas as primeiras informações são de que a Índia também terá um programa de transferência de tecnologia.
Para complicar o jogo, que já parecia definido, a Boeing está oferecendo para a Embraer a participação no programa de desenvolvimento do avião, chamado de Global Super Hornet, o que significa uma mudança de atitude inédita no governo americano em matéria de transferência de tecnologia.
Também o Congresso americano, que tem que aprovar os programas de transferência de tecnologia, deu a autorização prévia em setembro.
No final de dezembro passado o Ministro da Defesa Nelson Jobim recebeu por escrito uma proposta da Boeing, assinada pelo presidente e CEO Dennis Muilenberg, detalhando a oferta, que já havia sido chancelada pela Secretária de Estado Hillary Clinton em carta ao ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.
A proposta da Boeing é transformar a indústria brasileira “no único fornecedor de peças críticas da célula para a linha de produção do Super Hornet para o Brasil e todas as aeronaves da Marinha dos Estados Unidos”.
A empresa se compromete também a entregar “os primeiros pacotes de dados de engenharia” junto com a assinatura do contrato.
Será criada uma estrutura de gerenciamento para a transferência de tecnologia da Boeing para o Brasil, e para demonstrar confiança de que o contrato será cumprido, a empresa americana aceita pagar uma penalidade financeira de 5% “com base em qualquer obrigação não concretizada”.
O Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, já falou três vezes com o Presidente Lula para dar o apoio ao projeto, e a Secretária de Estado Hillary Clinton garantiu, na carta a Amorim, “o apoio total do Departamento de Estado dos Estados Unidos à oferta da Marinha americana, com a Boeing, do F/A – 18/F Super Hornet à Força Aérea Brasileira como parte da concorrência brasileira”.
Para dissipar dúvidas sobre a transferência de tecnologia, que é o calcanhar de Aquiles da proposta americana, a secretária Hillary Clinton escreveu que “este é um importante momento para uma aliança estratégica Estados Unidos-Brasil e estamos interessados em expandir a cooperação bilateral não apenas através de venda de armamentos, mas também através de uma crescente cooperação na indústria de defesa, inclusive na área de transferência de tecnologia”.
A Boeing se compromete também a financiar cerca de 100 mil homens/hora para a Embraer participar do programa internacional de desenvolvimento do Global Super Hornet, o que tornaria o caça “financeiramente acessível, viável e capaz para além de 2020”.
A desconfiança de setores do governo brasileiro em relação à nova postura dos Estados Unidos sobre transferência de tecnologia, porém, continua.
Há um trecho na carta da secretária Hillary Clinton em que ela garante que o Departamento de Estado apoia integralmente “a transferência de toda informação relevante e a tecnologia necessária”, o que é interpretado como uma limitação a essa transferência.
Os Estados Unidos definiriam, de acordo com seus interesses particulares, o que seria tecnologia “relevante” e “necessária”.
Até mesmo a multa de 5% em caso de não cumprimento do acordo é visto por esses setores não como uma demonstração de boa-fé, mas de dúvidas da própria Boeing sobre o cumprimento dos compromissos assumidos.
Se não antes, na próxima visita da Secretária de Estado Hillary Clinton ao Brasil, em março, o governo brasileiro poderá esclarecer essas dúvidas.
Isso se não anunciar sua decisão antes. Há especulações de que faria isso nos próximos dias, embora agora a questão do preço esteja em destaque e precise de uma explicação pública.
Se o governo brasileiro não anunciar sua decisão oficial antes do Carnaval, no entanto, certamente quando o Congresso voltar a funcionar o tema provocará um amplo debate, a começar pelas razões por que o governo brasileiro insiste em fazer uma parceria estratégica com a França mesmo a custa de pagar mais que o triplo do preço pago pela Índia, ou quase o dobro dos Emirados Árabes.
E por que a parceria estratégica proposta pelos Estados Unidos não é tão interessante para o Brasil quanto a da França. As vantagens e desvantagens de cada uma terão que ser dissecadas em público.
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