O que as tropas brasileiras estão fazendo no Haiti?
FOLHA DE SÃO PAULO - 21/01/10
Solidariedade não é antônimo de reflexão. O imperativo de ajudar os haitianos neste momento extremo não deve servir de pretexto para calar a pergunta fundamental: o que tropas brasileiras estão fazendo na nação caribenha?
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nunca fez segredo de que aceitou o comando da Minustah em 2004 como parte de sua estratégia para obter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança (CS) da ONU. Para alcançar esse objetivo, calculava o Itamaraty, o Brasil precisava mostrar-se protagonista nos acontecimentos internacionais.
A principal falha desse projeto é que são extremamente reduzidas as chances de ocorrer uma reforma da ONU nos moldes acalentados pela diplomacia brasileira. A maioria das nações até concorda com a ideia abstrata de uma reformulação da ONU. A instituição, afinal, ainda opera sob o paradigma geopolítico que imperava após a 2ª Guerra, que deu aos cinco países vencedores do conflito (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China) poder de vetar qualquer resolução do CS.
O acordo sobre a reforma, entretanto, cessa assim que se começam a detalhar as propostas de ampliação do CS.
O Japão e a Alemanha, pelo tamanho de suas economias, seriam candidatos óbvios a assumir uma vaga permanente. Também o seriam, por seu porte e localização, o Brasil e a Índia. É compreensível, porém, que a Itália não esteja tão certa de que deva ser a Alemanha o novo representante europeu. De modo análogo, México e Argentina não veem com bons olhos a reivindicação brasileira.
No Oriente, a situação é ainda pior. É mais fácil imaginar Pequim recebendo o dalai-lama com honras de chefe de Estado do que concordando em dar um assento ao arqui-inimigo histórico Japão. E a China, vale lembrar, tem poder de veto sobre qualquer reforma. O Paquistão prefere ver a Caxemira em chamas a entregar à Índia o bônus de uma cadeira permanente.
Equacionar essas e muitas outras complicações numa fórmula aceitável para todas as nações e seus respectivos aliados com poder de veto no CS é tarefa fadada ao fracasso.
Não obstante o irrealismo do sonho itamaratiano, a busca por esse assento dourado tem sido o eixo da política externa brasileira nos últimos anos.
É em nome dessa obsessão que nossas tropas estão no Haiti. Foi para exercer o tal do protagonismo internacional que o Brasil, contrariando suas tradições diplomáticas, meteu-se em enrascadas como o apoio quase incondicional a Manuel Zelaya em Honduras.
Foi para contentar eleitores importantes na política da ONU que o país repetidamente votou no Conselho de Direitos Humanos para livrar de condenações tiranos como o sudanês Omar al Bashir e os governantes chineses e cubanos.
É possível que a presença do Brasil no Haiti seja positiva. Mas, neste caso, o governo deveria ser capaz de justificá-la com argumentos políticos que vão além de bandeiras eleitorais e sonhos megalomaníacos.
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