Volta ao passado
O GLOBO - 09/01/10
A crise militar provocada com o decreto assinado pelo presidente Lula que, ao instituir o Programa Nacional de Direitos Humanos abre brechas para que a Lei da Anistia seja revista, deve ser superada com o entendimento de que esse assunto tão delicado está a cargo do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem caberá a última palavra sobre o alcance da anistia e a prescritibilidade dos crimes cometidos durante a ditadura militar.
Uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) protocolada pela Ordem dos Advogados do Brasil no STF contesta a tese de que a Lei da Anistia perdoou os torturadores. Os militares estão aguardando um pronunciamento do presidente da República nesse sentido, já que ele assumiu um compromisso de que faria mudanças no decreto.
A crise específica com os militares foi também englobada em diversas outras crises que o decreto abriu em diferentes setores da sociedade, desde a agroindústria até a Igreja, passando pelos meios de comunicação e a produção cultural.
A pretexto de promover os direitos humanos, o decreto presidencial retomou diversas demandas dos grupos de esquerda do PT, compondo um movimento sincronizado com várias medidas que vêm sendo tomadas no segundo governo Lula, aproximando-o da plataforma defendida em 2001 no XII Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores no documento “Um Novo Brasil é Possível”.
Esse documento, na ocasião considerado radical, escrito pelo então prefeito de Santo André, Celso Daniel, que depois seria assassinado, defendia uma “ruptura necessária” no campo econômico e teve que ser renegado publicamente pela campanha de Lula em 2002, que, em seu lugar, lançou a “Carta aos Brasileiros”, na qual se comprometia a manter as linhas principais do programa econômico que estava em vigor.
No Congresso realizado em Olinda, o PT defendia teses que aos poucos estão sendo retomadas pelo governo, como a maior intervenção do Estado na economia, a tentativa de controle dos meios de comunicação, a pretexto de “democratizálos”, e a utilização da “democracia direta”, a la Chávez, com o uso de plebiscitos e referendos como instrumentos para a tomada de decisões.
Com relação à Lei da Anistia, além de estar em exame pelo Supremo, mesmo decretada em agosto de 1979, ainda no governo militar de João Figueiredo, ela foi, como lembra o deputado federal Raul Jungmann, “referendada e ampliada” em diversos momentos da transição democrática.
Ainda no governo José Sarney foi feita uma emenda constitucional sobre a anistia, possivelmente dentro de um negociação com os militares como uma maneira de blindar o assunto.
O passo seguinte foi o art i g o 8 da s D i s p o s i ç õ e s Constitucionais Transitórias na Constituinte de 1988, que não só legitima a anistia, como a amplia.
No novo texto constitucional, a anistia retroage a 1946 e vai até 1988, e ao fazêlo, os constituintes incluíram os chamados “crimes de sangue”, cometidos pelos que pegaram em armas, que não estavam abrangidos pela anistia negociada no período dos militares. Os envolvidos nesses crimes estavam fora da cadeia, mas não tinham garantia de anistia, relembra Jungman.
A Constituinte, portanto, referendou e ampliou a anistia, ficando explícito que o processo extrapola o período militar e entra pela redemocratização.
Prosseguindo nesse caminho, há duas leis fundamentais do governo Fernando Henrique: uma de 1996, que abre o caminho para as reparações e indenizações, e uma medida provisória de 2001, na qual foi feita a regulamentação do artigo 8 da Constituição, 13 anos depois, e criou o regime jurídico dos anistiados que permitiu as indenizações.
Não faltou à cerimônia de regulamentação uma imagem emocionante, como a que tirou lágrimas do presidente Lula recentemente: o general Cardoso, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, apareceu nas fotos abraçado com a viúva do deputado Rubens Paiva, assassinado na ditadura.
Nesse período, em 1997, houve um caso que poderia ter gerado problemas políticos, mas foi resolvido de maneira exemplar pelo ministro do Exército da época, numa demonstração de que o espírito da anistia recíproca estava prevalecendo.
O presidente do Colégio Militar em Porto Alegre mandou tirar de uma placa o nome de Carlos Lamarca, e o general Zenildo Zoroastro Lucena, que era então ministro do Exército, ao saber, mandou não só recolocar o nome de Lamarca na placa como exonerou o comandante do Colégio Militar.
Para além das posições a favor ou contra a anistia para torturadores ou terroristas, há um fato que deveria ter sido respeitado pelo governo ao enviar o decreto ao Congresso: o Supremo Tribunal Federal vai analisar uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil que contesta a validade do primeiro artigo da Lei da Anistia que considera como conexos e igualmente perdoados os crimes “de qualquer natureza”, sejam políticos ou praticados por motivação política, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
A questão foi suscitada por uma ação do Ministério Público de São Paulo, que acusa o general da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra e o oficial da reserva no comando do DOI-Codi, Audir Santos Maciel, de terem sido torturadores entre 1972-73, provocando o desaparecimento, morte e tortura de 64 pessoas.
Os militares temem que os resultados de uma eventual Comissão da Verdade, que o decreto institui, amplificados pela mídia, influenciem a decisão do Supremo sobre a anistia. No entanto, esse efeito não deverá acontecer, pois há um movimento para que o Supremo decida logo a questão, e é provável que esses temas não entrem na ordem do dia do Congresso tão cedo, diante das reações dos diversos setores da sociedade atingidos pelo decreto.
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