Princípios que amávamos e a prática
FOLHA DE SÃO PAULO - 09/01/10
Aliados norte-americanos no Oriente Médio não têm exatamente o mesmo apego à sociedade aberta que EUA
QUANDO CHEGOU , anteontem à noite, o e-mail da Casa Branca com o discurso do presidente Barack Obama, minha atenção centrou-se em um pedaço que, a rigor, tinha pouco a ver com o eixo do pronunciamento (terrorismo e como combatê-lo).
É o pedaço que diz: "Estou menos interessado em passar adiante a culpa do que em aprender desses erros e corrigi-los", em alusão às falhas "sistêmicas" que permitiram o atentado, ainda que frustrado, do dia de Natal. A frase fechava com: "Quando o sistema falha, é minha responsabilidade". Em um mundo em que governantes raramente assumem suas responsabilidades por qualquer tipo de problema em suas gestões, é uma lufada de ar fresco. Retórica, dirá você. Sim, retórica, mas é sempre melhor do que culpar algum auxiliar, o resto do mundo, uma conspiração da mídia que jamais existiu -enfim, o elenco de fuga à responsabilidade a que os brasileiros nos acostumamos há séculos e que só faz crescer. Um segundo trecho do discurso é igualmente feliz, a saber: "Não vamos sucumbir a uma mentalidade que sacrifique a sociedade aberta e as liberdades que valorizamos, pois grandes e orgulhosas nações não se escondem atrás de muralhas de suspeita e de desconfiança". Como enunciado, perfeito. Pena que a realidade seja bastante diferente. Os EUA, em nome de preservar as liberdades que valorizam, sacrificaram as liberdades alheias, não apenas na América Latina mas também no mundo árabe, o que ajuda a entender as dificuldades para ganhar a guerra contra o terrorismo. Ou, como escreveu ontem para "El País" da Espanha Juan Goytisolo, grande novelista espanhol, "enquanto os reformistas e dissidentes do comunismo soviético receberam o suporte material e moral do Ocidente durante a Guerra Fria, os dos países árabes foram varridos ante a sua indiferença ou com sua pouco gloriosa cumplicidade". Poderia citar dezenas de exemplos, mas fico com o do país que entrou na roda como novo foco do terrorismo, o Iêmen. A revista "Foreign Policy" publica notável artigo de Ellen Knickmeyer, ex- correspondente em países do Oriente Médio e na África para o "Washington Post" e a Associated Press, hoje aluna da Escola Kennedy de Governo, da mitológica Harvard University. O texto é extremamente simpático ao país e aos iemenitas, mas diz de seu presidente, Ali Abdullah Saleh: "O governo Saleh tentou fazer jogo duplo com a Al Qaeda e com os Estados Unidos; seu ministro da Defesa até admitiu ter chamado pessoal da Al Qaeda e outros extremistas religiosos sunitas [maioria no país, embora o presidente seja xiita] para lutar contra um rebelião xiita no norte do Iêmen". Knickmeyer também cita o fato de que diplomatas ocidentais acusam Saleh de ter chegado a um acordo de cavalheiros com a rede terrorista, "pelo qual permitia a figuras da Al Qaeda viver no Iêmen desde que não cometessem atentados contra o governo de Saleh ou outros alvos no país". A questão em aberto é saber se Obama poderá compatibilizar a guerra ao terrorismo com a preservação de sociedades abertas, de mãos dadas com os muitos Salehs espalhados por aí.
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