Quatrilho macroeconômico
O ESTADO DE SÃO PAULO - 10/01/10
Os modelos de consistência macroeconômica eram o que de mais avançado se rodava na econometria dos anos 1980. Hoje, em qualquer revista ou congresso de economia, inclusive nacionais, não faltam modelos para os mais diferentes temas, alguns sofisticados, outros confundindo meios com fins, mas raro é reencontrar algo sobre consistência macro. O instrumento caiu em desuso com as visões mais amplas e integradas das diferentes faces da política econômica. A coordenação entre suas instâncias também parece ter saído de cena (a mídia nem cita mais "equipe econômica"). Parece que a ordem é cada um cuidar do seu quintal, esmerar-se em mantê-lo bem limpo, pouco importando se à custa de varrer o lixo para o vizinho (quando não para debaixo do tapete).
Se a crise global, por si só, exigiu um incomum esforço de análise e decisões, o desembarque dessa excepcional postura exige ainda mais cuidados. É uma ótima oportunidade para resgatar a ideia de consistência macro. Desmontar gradualmente as medidas anticrise é bom momento para melhor interconectar políticas e práticas.
É inegável que os juros básicos ainda seguem muito acima dos padrões internacionais, no entanto, o mercado pressiona por novo aumento de taxa, talvez menos pela (falta de) perspectiva inflacionária e mais como "prêmio" para não preocupar com metas fiscais atendidas por contabilidade criativa (já subiu para status de mágica), muito menos com as projeções de deterioração das contas externas.
O crédito transformou nosso funcional tripé da política econômica numa espécie de "quatrilho". Foi o principal determinante para o Brasil mergulhar (surpreendentemente) em sua recessão mais profunda, mas, ao mesmo tempo, em fazê-la a mais curta. Dados oficiais mostram que, após a crise, o estoque de crédito cresceu muito (7,5 pontos do PIB de setembro de 2008 até novembro último), puxado basicamente pela maior oferta por instituições financeiras públicas (responderam por 5,6 daqueles pontos), enquanto recuava a taxa de investimento nacional (de 20,1% para 17,7% do produto, entre o terceiro trimestre de 2008 e de 2009).
Os bancos federais precisaram tomar crédito extraordinário (mais 4,6 pontos do PIB no mesmo período) com o Tesouro Nacional - na prática, ele virou o maior "banco" do País, pois já acumula créditos de 12,4% do produto (sem contar mais R$ 80 bilhões extras, que serão concedidos neste ano). Os recursos federais não poderiam sair de resultado primário, que minguou com a expansão (clarividente) de gastos (com custeio, enquanto o investimento seguiu patinando), fora o impacto brutal da revalorização cambial (já perdidos 3,1% do PIB no ano passado, ante 5,5% ganhos no anterior).
Estourada a crise em setembro de 2008, nos catorze meses seguintes o total de papéis públicos em mercado cresceu 10,6 pontos do PIB (exatamente o mesmo aumento dos meios de pagamento, no conceito M3). Metade desse incremento fluiu via operações compromissadas do Banco Central, que rolam em média a cada 40 dias (ante 40 meses do Tesouro) - aliás, se inexistiam em janeiro de 2002 (quando a mobiliária era de apenas 35% do PIB), já respondem por um quarto do estoque de títulos, que encostou em 60% do PIB, como nunca antes na história.
Fechamos a década seguindo ao pé da letra o roteiro descrito por Keynes sete décadas atrás. Quando empresas optam por aplicar a produzir com recursos próprios e os bancos ficam com medo de emprestar para outros bancos, ambos preferem emprestar cada vez mais para o governo. O Brasil caiu num arranjo que combinou aumento do crédito bancário (chegou a 45% do PIB) com incremento muito maior na dívida pública (64% do PIB, no conceito bruto, usado internacionalmente), enquanto servia a exacerbada preferência privada por liquidez (ao menos 15% do PIB em operações compromissadas). Inegavelmente isso serviu para expandir o consumo e a economia de imediato, mas impõe grandes desafios para o longo prazo. De certo, a solvência da dívida pública está garantida, mesmo no novo mágico mundo fiscal. Mas já passa a hora de retomarmos os modelos e as reflexões sobre consistência macroeconômica.
*José Roberto Afonso, economista, é mestre pela UFRJ e doutorando da Unicamp
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