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Três missas negras em sete dias
O olhar homicida e o estoque de insultos ficaram na portaria. O Fernando Collor que apareceu na sede provisória do governo no começo da noite de terça-feira era o católico caridoso, que anda assombrando a tribuna do Senado com leituras de escritos do Papa. O encontro foi excluído da agenda oficial, como se recomenda a conversas entre bons companheiros.
Oficialmente, Lula só queria explicar a Collor, contrário à entrada da Venezuela no Mercosul, que Hugo Chávez é gente fina. Não sobrou tempo para isso. Trataram exclusivamente das coisas do Congresso. O anfitrião, acusado pelo ex-presidente de tentar forçar o aborto da filha, cumprimentou o visitante que acusou de corrupto. Acharam positivo o balanço do primeiro dia da ofensiva tramada para socorrer José Sarney, que ambos chamaram mais de uma vez de ladrão. Ficou combinado que o ataque seria retomado por Renan Calheiros na quarta-feira e encerrado na sexta por Paulo Duque.
O presidente do Conselho de Ética nomeado pelo governador Sérgio Cabral fez o serviço sujo com muita animação. Sepultou entre comentários debochados as denúncias restantes e deu o assunto por liquidado. Não foi. Os pastores da seita dos primitivos, que rezaram três missas negras em sete dias, terão de encontrar-se com bastante frequência. Collor vai virar gente da casa. Se Lurian estiver por lá em noite de visita, o pai pedirá que traga um prato de salgadinhos para o tio Fernando. E um balde de gelo.
Os brasileiros do Bolsa Família abdicaram do direito de sonhar
“Primeiro tenho de saber se a patroa deixa”, condicionou Neili dos Santos Ferreira ao ser convidada pela produção do VEJA Entrevista. Liberada pela dona do apartamento de que cuida uma vez por semana, a diarista nascida na Bahia, 39 anos e dois filhos escolheu a melhor roupa, cobriu-se com uma contrafação de casaco de pele, incompatível com a tarde quente, e apareceu no estúdio pronta para contar o que pensa e como vive uma brasileira inscrita no Bolsa Família.
Incluído o salário do marido, a renda familiar é de R$1,8 mil. Pelos critérios dos alquimistas federais, pertencem à classe média os quatro brasileiros que, sem dinheiro para a casa própria, moram com a sogra de Neili. Ganha do governo R$ 20 por mês, mas se daria por satisfeita com a metade. ”O Lula é um paizão”, abre o sorriso a diarista, decidida a votar no sucessor escolhido pelo único político em quem confia. ”Ele foi pobre igual à gente”, explica.
Não sabe quem é Dilma Rousseff, mas a ministra pode contar com quatro votos se Lula quiser. Ouviu dizer que, se a oposição vencer, o Bolsa Família vai acabar. Não sabe muito sobre o mensalão e outros escândalos. Não lê jornais nem revistas, nunca leu um livro. Anda evitando os noticiários da TV “porque só falam em coisa ruim”. Não vê diferenças entre os partidos, mas se declara fiel ao PT, “que mudou para melhor”. Na última eleição, só votou num candidato a deputado. Não recorda o nome: ”Foi meu irmão que indicou”.
Sempre falta dinheiro no fim do mês. Se ganhasse na loteria, compraria uma casa. Sem tempo nem verba para qualquer tipo de lazer, nunca viu uma peça de teatro e foi ao cinema só uma vez. A filha quer ser cabeleireira, o filho tem jeito para futebol. O que faria se o menino se tornasse um craque internacional? Ajudaria o irmão alcóolatra. Parou de estudar ainda no segundo grau porque não gostava.
Não dá maior importância à formação escolar. Lula, por exemplo, não precisa aprender mais nada para lidar com qualquer problema, até mesmo complicações internacionais. Se for preciso, basta chamar um professor particular. Neili acompanha à distância as bandalheiras no Senado, não entende direito o que está acontecendo. O ser humano é muito ganancioso, generaliza. Num recado a José Sarney, recomenda ao senador que, se tiver culpa no cartório, confesse o que fez e peça desculpas. Lula não tem nada a ver com a confusão, ressalva.
A incursão pelo universo do Bolsa Família é reveladora e inquietante. Como a diarista, milhões de brasileiros admitem que a vida anda difícil, mas não têm queixas a fazer, muito menos exigências a apresentar: sobreviver é suficiente. Abdicaram do direito de sonhar. Conformam-se com pouco mais que nada.
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