Tolerância
JORNAL DO BRASIL - 02/05/09
Os torcedores mais fanáticos jamais admitirão. Mas eu tenho certeza de que, no último domingo,
muitos palmeirenses cerraram os punhos e, de uma maneira discreta, quase imperceptível, comemoraram um pouquinho os inesquecíveis gols de Ronaldo contra o Santos. Da mesma forma, estou convencido de que muitos corintianos – e alguns até confessaram, a meia-voz, para mim – ergueram-se levemente do sofá para reverenciar, ainda que por uma fração de segundo, o gol épico que Cleiton Xavier marcou na última quarta-feira.
O futebol tem dessas coisas. Aqueles que amam o esporte, mesmo sem saber ou admitir, amam a beleza do jogo até mais do que o próprio clube. Por mais que sejamos torcedores de um time, quando o rival faz um lance de rara beleza, acabamos gostando. Uma parte de nós, a menos racional e lógica, acaba gostando. Recordo-me que no início dos anos 80, ainda moço – e aqui vai uma confissão que só agora tenho coragem de fazer – fui várias vezes ao Maracanã ver o melhor time da história do Flamengo jogar. Meu álibi intelectual, a desculpa que dava para mim mesmo, era esta: vou lá para secar, para torcer contra. E, com efeito, sentava sempre na torcida adversária: do Vasco, do Botafogo e até de clubes de outros estados e países.
Certa vez, ao explodir uma briga, quase apanhei como santista. Pensei comigo: imagine se o meu pai abrir o jornal amanhã e ler uma matéria sobre santistas que foram vítimas de violência. Apanhar como tricolor, ainda vá lá. Mas apanhar como torcedor de outro clube já seria demais. Meu pai poderia achar que virei casaca, crime maior que alguém pode cometer para com a própria consciência. Nessa de agourar o Flamengo, acompanhei exibições históricas do time que, ao lado da Máquina do Flu, de meados dos anos 70, foi a maior orquestra de craques que vi em ação. Mas será que eu ia mesmo ao estádio para azarar os rivais? Na época, acreditava piamente nisso. Hoje, devo reconhecer que, apaixonado por futebol bonito como sou, provavelmente ia ao Maracanã para me deleitar com a classe de Zico, Júnior, Leandro, Mozer e companhia.
Os torcedores mais radicais do Fluminense, a essa altura, estão pensando em me dar uma surra. Mas os tricolores autênticos, com sua habitual fidalguia, devem estar admitindo – silenciosamente, claro – que também gostavam de ver aquele time danado jogar. E não se iludam: conheço rubro-negros que foram ao Maracanã, em pleno sábado de Carnaval, ver a estreia de Rivelino pelo Fluminense. Que bom que existe gente assim. Amar o que e quem amamos não nos impede de reconhecer méritos nas coisas no que não amamos. Isso nos ajuda ao menos a não odiar, atitude fundamental para que a paz um dia possa reinar nos estádios. Portanto, amigo leitor, admita: você já vibrou, escondidinho, constrangido, debaixo das cobertas, com um gol do rival. Como amar o futebol e não sorrir com os toques de classe e a história de superação de Ronaldo? Como não chegar perto de explodir com a bomba de Cleiton Xavier, decidindo um jogão que parecia perdido?
Atitudes assim me dão esperança. Fala-se muito em amor, mas o amor é a pós-graduação, o doutorado, o PhD dos sentimentos. Para chegar a ele, devemos começar com coisas mais simples, no curso elementar da educação sentimental. O nome desse fundamento é tolerância. E ela, antes do amor, é o que pode começar a por ordem no mundo. Espero que a tolerância possa estar presente no Pacaembu, no Maracanã e em todos os estádios do mundo, no próximo domingo. Quando rivais – e não inimigos – entrarão em campo para perpetuar a magia do esporte que tanto amamos.
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