Comissão atrapalha e não resolve
Villas-Bôas Corrêa
JORNAL DO BRASIL - 02/05/09
A LIÇÃO TANTAS VEZES repetida que ficou gravada na memória ensina que, quando a burocracia, em todos os seus níveis, manobra para adiar para as calendas uma decisão enrascada em dúvidas, não há melhor saída do que criar uma comissão. Daí em diante é só deixar o tempo correr até que a pedra do esquecimento soterre o indesejável na poeira dos arquivos.
Foi com esta ponta de desconfiança que analisei a decisão do presidente da Câmara, deputado Michel Temer (PMDB-SP), de criar uma comissão composta pelos integrantes da Mesa e pelos diretores da Casa para apresentar uma sofisticada proposta de modernização da estrutura do mandato parlamentar. Francamente, se não é, tem todas as características de uma jogada protelatória, para esperar que baixe a poeira das surdas reclamações de decepcionados deputados com o fim da orgia com as cotas de passagens aéreas, antes que as articulações entre a Câmara e o Senado fechem o acordo sobre o delicado tema das mordomias, vantagens e mutretas dos representantes do povo.
E, se não é bem assim, para que comissão? A farra dos saques ao cofre da Viúva chegou a tais extremos de desfaçatez que não é necessário mais que uma avaliação crítica para separar o que não salta a cerca do razoável da lista dos absurdos do despudor.
O deputado Michel Temer, os membros da mesa e os diretores da Casa ligados ao controle das verbas da Câmara, trancados numa sala, longe do vozerio do baixo clero e de seus aliados, não teriam a menor dificuldade em cortar ou rever as parcelas da relação dos premiados com um dos melhores empregos do mundo.
O prazo de um mês, para o que pode ser feito em horas, cutuca na suspeição que tirava a sua soneca com o sedativo do corte na farra das passagens aéreas. A leitura das parcelas que compõem o buquê dos subsídios parlamentares forneceria à ilustre comissão os elementos suficientes para o corte de mais da metade. Reconheça que R$ 16.519 mensais está muito abaixo do padrão de vida de um parlamentar. Mesmo com a ajuda de custo de R$ 33.339 e um subsídio a mais no início e no fim de cada sessão legislativa.
Convém respirar fundo e tapar o nariz para a travessia no lamaçal das mutretas geradas nos quase 50 anos da mudança da capital para Brasília. Uma das mais imorais é a verba indenizatória de R$ 15 mil mensais para o ressarcimento das despesas durante o fim de semana no seu feudo eleitoral. Trata-se de um rolo de arame farpado de trampas. Não há nada que justifique o prêmio ao privilégio do parlamentar não morar em Brasília, com a família, com excelentes apartamentos mobiliados à disposição e que se deterioram no desleixo do abandono.
De uma só cajadada abatiam-se dois abusos: a cota de passagem e a verba indenizatória. E o Congresso recuperaria com a compostura as condições ideais para o seu funcionamento. Auxílio-moradia de R$ 3 mil mensais para o sofisticado que recusa morar em Brasília ou utilizar o apartamento funcional seria um puxão de orelhas no descaro da ganância.
Um nicho intocável e suspeito, e que custa uma fortuna, espalha-se por corredores e anexos do Congresso com os gabinetes individuais dos senadores e deputados, fornidos com verbas de fazer inveja a um encalacrado milionário com a crise econômica. São R$ 60 mil mensais para contratar até 25 assessores. O nível dos debates parlamentares, transmitidos pela TV-Câmara, é um bom índice para avaliar a utilidade dos 25 assessores, que não cabem em pé em muitos gabinetes dos anexos.
O Congresso continua a merecer o crédito de confiança reconquistado com a decisão dos presidentes das duas Casas de acabar com a escandalosa farra dos bilhetes aéreos. É uma pena que não tenha continuado na mesma trilha, preferindo o atalho da criação da comissão para rever benefícios sabidos e expostos ao desprezo da opinião pública. Na desculpa para a madraçaria, invoca-se sempre a desculpa de que o governo mumificou o Congresso com o uso e abuso das medidas provisórias, uma fila de inutilidades que tranca a pauta e impede a votação de matérias que envelhecem antes de serem votadas.
Seria mais simples cortar o mal pela raiz. Bastaria o Congresso acabar com as medidas provisórias com uma emenda constitucional aprovada pelo voto do brio dos representantes do povo.
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