Explorar a doença da ministra para alçar a sua candidatura é cruel e desrespeitoso
A perversão na política nacional não tem limites, e não se resume à manipulação do mandato parlamentar para fins particulares, como se descobre pela revelação dos podres do Congresso. A exposição da doença da ministra Dilma Rousseff — um tumor no sistema linfático, felizmente diagnosticado em estágio inicial — foi um exemplo de desprendimento pessoal. Mas deturpado por oportunismo dos outros.
O consultor de política externa do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, declarou que “isso”, referindo-se ao tumor, “vai reforçar a candidatura dela”. Não se diz “isso”. É câncer. Outros aliados disseram coisas assemelhadas. Fica implícita a visão utilitarista.
Não se diz coisas assim sobre mal tão agressivo, que abate, reduz a imunidade, provoca reações desagradáveis, dando teor oportunista às manifestações espontâneas e sinceras de solidariedade de todos.
A corrida eleitoral é um detalhe, além de distante, para daqui a 18 meses. Nem deveria já estar lançada pelo presidente Lula à sua sucessão, embora informalmente. Ela pode ser a candidata, mas por ora tem obrigação maior com sua própria saúde — e é só o que lhe deve importar, sem constrangimentos. Soa muito mal dizer que “isso deve ter impactado muito bem na opinião pública do país”, como se drama pessoal fosse atributo para eleger seja lá quem.
Foi desrespeitoso, mas também cruel. Em Manaus, o presidente, ao lado da ministra, disse ter “a convicção de que ela não vai parar um dia sequer”, ainda que antes tenha afirmado que “a prioridade zero é cuidar da saúde dela, até porque com essas coisas a gente não brinca”. Dilma é candidata, ministra de coordenação gerencial do governo, na prática, e gestora do programa de obras do PAC.
A ordem de importância das responsabilidades merece ser revista. Sem pressão, que é o que a submete tais manifestações — mesmo que ela as receba como normais. A tendência em situações-limite como esta é a vontade de superação. Mas depende do que. Da doença, a força interior é decisiva. Para mostrar-se supermulher, é exigir demais de um momento de submissão total às ordens médicas.
Não será preciso muito mais para se diferenciar na cena nacional. O festival de horrores exibido pelos parlamentares já destaca quem tenha um mínimo a apresentar, e a ministra tem bem mais que isso.
A Câmara se convence A Câmara na derradeira hora voltou atrás e fez aprovar por ato de sua direção as medidas moralizadoras propostas pelo presidente da Casa, deputado Michel Temer. Se fosse a voto no plenário, como uma grande parcela dos deputados pretendia, não era pequeno o risco de derrota de Temer, lançando a Câmara num buraco pior do que está.
O que se aprovou foi a limitação da cota de passagens aéreas só ao parlamentar. Viagens ao exterior e de assessores a serviço vão ter de passar pela Mesa da Câmara. O Senado já havia feito igual.
Se houver transparência, talvez não se ouçam mais histórias de deputados doando passagens a time de futebol do Ceará ou levando a namorada famosa e a sogra para passear em Miami. Ou do senador que as sorteou em festa de fim de ano entre jornalistas de seu estado.
Mas há mais absurdos Outro pagou advogado contratado para defendê-lo junto à Comissão de Ética com verba de gabinete. Só pode ser sarcasmo tanto quanto a do casal de parlamentares que embolsa ajuda-moradia residindo em Brasília. Os acintes não param. Descobriu-se, melhor, atentou-se — pois tudo é do arco da velha — para outra aberração no limite da decência: senadores e familiares dispõem de plano de saúde para a vida toda, vitalício, com reembolso até de consultas médicas.
Suplentes também, mas precisam exercer o mandato por seis meses. Ah, bom! Até 1995, bastava um dia de mandato para o senador ter o seguro-saúde vitalício. Os que os faz melhores que os brasileiros em geral, sem acesso a privilégios, e que lhes pagam os salários?
Expedientes amorais A perplexidade está em toda parte. Só parece não ser maior que a dos parlamentares, surpresos com a divulgação de seus expedientes amorais e a reação do que chamam de “pulsar das ruas”. Moralizar o acesso às passagens foi um começo. Restam as demais mordomias, da época da mudança para Brasília, que se perpetuaram e cresceram. O subsídio existe para permitir a quem tenha poucos recursos exercer o mandato parlamentar. Este é o limite ético do incentivo. O resto não pode diferir do que é possível às pessoas em geral. Quem não gostar que não se candidate. Política é missão, não meio de vida.
Nem tudo está perdido A sacudida entre os parlamentares já provoca indícios de que nem tudo está perdido. O líder do PT na Câmara, Cândido Vaccarezza, por exemplo, defende uma “reforma administrativa profunda, porque há problemas não só no Legislativo, mas em todos os poderes”. Ele propõe desvincular os salários de deputados federais e senadores dos de deputados estaduais e vereadores, assim como de promotores e procuradores dos vencimentos da magistratura. A idéia é acabar com o efeito cascata, que amarra uma categoria à outra, mesmo que a similitude seja apenas aparente. Vaccarezza retoma antiga visão do PT sobre a vida pública. É um avanço. Voltaremos ao tema. |
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