domingo, agosto 04, 2019

É preciso tirar a máscara - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 04/08

Houve uma estagnação que atingiu todos os setores de atividade do futebol


O zagueiro Leandro Castán, do Vasco, que atuou vários anos na Europa, disse, no programa Bem Amigos, do SporTV, que falta a muitos jogadores brasileiros mais amadurecimento emocional e mais compreensão da estratégia de jogo e de comportamento profissional.

Penso que existe uma exagerada dependência dos jogadores aos treinadores, paizões, supervalorizados e que se tornam os principais responsáveis pelas vitórias e pelas derrotas.

Os atletas, em vez de procurar soluções em alguns instantes decisivos do jogo, ficam à espera dos “professores”.

Há um grande número de jovens promessas que não se transformam nos craques que pareciam ser porque foram mal avaliados —confundem habilidade com talento— e porque não tiveram lucidez e equilíbrio emocional para enfrentar os perigos do futebol e da vida.


Uma das funções dos treinadores e dos sistemas táticos é controlar os devaneios individualistas e valorizar o coletivo. Isso é importante. Por outro lado, um dos sentimentos mais presentes e decisivos na conquista do sucesso é a ambição de fazer individualmente o melhor. O futebol e a vida são feitos de contradições.

Vivemos também a época do futebol midiático, dos melhores momentos, da supervalorização dos lances individuais e da construção de heróis e de vilões a cada jogo.

A sociedade do espetáculo gosta muito mais de festejar e descartar do que de futebol.

Na Europa, com o desenvolvimento da ciência esportiva nas últimas décadas, foi feito um planejamento para melhorar a qualidade do jogo e do espetáculo.

Houve diminuição da violência, nos gramados, nas arquibancadas e fora dos estádios, do número de faltas, de tumultos, e melhorou o conforto para o torcedor e a eficiência e a beleza do jogo.

O futebol tornou-se mais prazeroso, emocionante e lucrativo. A importação dos melhores jogadores sul-americanos e de outros continentes contribuiu para esse crescimento.

Enquanto isso, no Brasil, houve uma estagnação que atingiu todos os setores de atividade do futebol. Todos precisamos evoluir.

Muitos conceitos ultrapassados são repetidos, e ainda aproveitam para usar os álibis de que não existem verdades no futebol e de que cada um tem sua opinião.

Os jogadores habilidosos, rápidos e dribladores, no momento certo, devem ser incentivados, mas é necessário ajudá-los a ter mais equilíbrio emocional, a melhorar a técnica e a fazer escolhas mais corretas. Não basta ser rápido e habilidoso. Essa é uma das razões de muitas derrotas brasileiras.

O 7 a 1 foi atípico, inesperado, mas escancarou nossas deficiências. Não sabíamos disso. A queda foi aos poucos e progressiva. De repente, levamos um susto. É o que acontece quando alguém, um dia, se olha no espelho e descobre que envelheceu.

“Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz.

Conheceram-me logo por quem não era, e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, já tinha envelhecido” (Fernando Pessoa).

Após o 7 a 1, o futebol brasileiro tem tentado tirar a máscara, mas há uma indefinição sobre o que colocar no lugar. Há várias possibilidades e tentativas. Tenho esperanças.

Há muitos jovens bons de bola, técnicos sérios, promissores e estudiosos, e alguns dirigentes e empresários que, para não perder a fonte, tentam unir o lucro com a qualidade do espetáculo. Mas temo que o futuro não chegue a tempo.

Tostão
Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina

A bunda dos malucos e/ou bêbados - RICARDO ARAÚJO PEREIRA

FOLHA DE SP - 04/08

Os ETs conseguem viajar no espaço, mas não são capazes de fermentar cevada


Sempre que ouço uma pessoa relatar a sua experiência de contato com formas de vida extraterrestre, o que me impressiona mais não é a confirmação da existência de alienígenas, é a frequência com que seres de outros planetas procuram a Terra para conviver com gente maluca e/ou bêbada.

Se um ser pertence a uma civilização que possui tecnologia suficientemente avançada para construir uma nave que lhe permite viajar durante milhares de anos-luz e depois escolhe abordar sobretudo as pessoas malucas e/ou bêbadas de outro planeta, talvez isso signifique que as pessoas malucas e/ou bêbadas detêm alguma espécie de sabedoria cósmica ou segredo especial.
Luiza Pannunzio/Folhapress

E, dada a conhecida obsessão dos extraterrestres pela introdução de sondas anais, fica também claro que essa sabedoria ou segredo se encontra na bunda das pessoas malucas e/ou bêbadas. Que a bunda dos malucos e/ou bêbados seja sistematicamente ignorada pelos cientistas terráqueos talvez explique o atraso tecnológico da humanidade. Enquanto não dedicarmos a essa área de estudos a atenção que ela merece, continuaremos a não ir muito mais longe do que a Lua.


No filme “E.T.: O Extraterrestre”, a componente de ficção científica está menos na visita de um ser de outro planeta e mais no fato de ele ter escolhido visitar uma família de classe média sem quaisquer elementos malucos e/ou bêbados, além de não manifestar qualquer interesse científico nas suas bundas. Isso e o fato de um extraterrestre que não é capaz de chegar às prateleiras de cima da geladeira conseguir construir uma sofisticada nave são os aspectos mais inverossímeis do filme.

No entanto, há um momento em que Spielberg revela o seu gênio. Quando o extraterrestre está sozinho em casa e de repente fica bêbado com apenas duas cervejas, torna-se evidente que não existe álcool no seu planeta.

Extraterrestres conseguem construir equipamento que lhes permite viajar no espaço, mas não são capazes de fermentar cevada nem destilar malte. O tempo que não gastam a beber, eles aplicam no desenvolvimento tecnológico. Mas sentem, e bem, que lhes falta qualquer coisa. O tipo de diversão que só o álcool proporciona. E então visitam-nos e estudam os nossos malucos e/ou bêbados, introduzindo sondas nas suas bundas. O que, curiosamente, é uma ideia típica de um bêbado.

Ricardo Araújo Pereira
Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

A importância de Rubens Ricupero - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 04/08

Além do aprendizado, em momentos críticos os indivíduos fazem a diferença


O movimento político Livres, coordenado por minha amiga Elena Landau, divulgou na semana passada documentário comemorativo dos 25 anos do Plano Real.

A grande surpresa do documentário foi o depoimento do ministro da Fazenda do governo Itamar, de março a setembro de 1994, Rubens Ricupero.

Sempre achei que o papel de Ricupero para a difícil construção da estabilidade monetária tivesse sido subsidiário. Estava enganado. Ricupero foi fundamental.

Quando FHC deixou o Ministério da Fazenda do governo Itamar para candidatar-se à Presidência, Itamar chamou Ricupero, à época ministro do Meio Ambiente, e convidou-o para o cargo. Ricupero ponderou que era mais oportuno que um membro sênior da equipe do ministério —Edmar Bacha ou Pedro Malan, por exemplo— assumisse a posição.

Na conversa, ficou claro para Ricupero que Itamar não queria ninguém da equipe de FHC à frente do ministério. Antes de aceitar, Ricupero tomou o cuidado de estabelecer precisamente a sua atribuição:

“Tocar o Plano Real com esta equipe”. Este foi o combinado. O discreto diplomata nascido e criado no Brás, figura de proa do Itamaraty, com livros publicados, tendo ocupado inúmeros cargos, entre eles a secretaria-geral da Unctad e a Embaixada do Brasil em Washington, negocia à mineira com o presidente mineiro: o que é combinado não sai caro.

Inúmeras vezes Itamar chamava Ricupero no Planalto. Este sugeria que um técnico o acompanhasse, o que era imediatamente recusado. A conversa tinha que ser entre eles.

Nesses difíceis encontros no Planalto, Itamar compartilhava com Ricupero sua preocupação com o sucesso do plano e tentava convencer o ministro de que ele tinha que adotar um formato mais próximo ao dos cinco planos anteriores, que tinham dado com os burros n’água: congelar os preços.

Inúmeras vezes pleiteou aumentos de salários para servidores e do salário mínimo.

Na véspera do lançamento da nova moeda, em 30 de junho de 1994, no início da noite, o ministro da Justiça de Itamar, Alexandre Dupeyrat Martins, do círculo íntimo do presidente, foi ao Ministério da Fazenda conversar com Ricupero. Persio Arida participou da conversa.

O presidente Itamar ainda não assinara a medida provisória, apesar de toda a logística para o lançamento físico da nova moeda estar pronta.

A pedido de Itamar, o ministro da Justiça inicia meticulosa inquirição sobre a consistência econômica do plano.

Após longo tempo de conversa em que Persio repassou com o ministro da Justiça os fundamentos do Plano Real, Ricupero perde a paciência, liga para a secretária particular de Itamar e diz: “Transmita o seguinte recado ao presidente. Mas faça-o desta forma: se o presidente não me receber em duas horas, algo muito ruim acontecerá”.

O ministro da Justiça, indignado com os termos do telefonema de Ricupero, pergunta se ele não é bem-vindo à Fazenda. Ricupero responde que sempre será. E, se Itamar assim o desejasse, Dupeyrat poderia assumir a Fazenda.

Itamar chamou Ricupero, assinou a medida provisória, e o resto é história.

A construção de uma sociedade é um processo coletivo em que o aprendizado é um elemento importantíssimo. Parece, por exemplo, que a sociedade brasileira aprendeu que não se trava conflito distributivo com inflação. A Argentina ainda não aprendeu essa lição.

Mas além do aprendizado, em momentos críticos os indivíduos fazem a diferença. Ricupero fez. Eu, minhas duas filhas e a sociedade inteira agradecem.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

Euforia e apatia no tribunal - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 04/08

Tribunal precisará decidir como enfrentar o caso ou ficará na apatia dos últimos anos



A força-tarefa de Curitiba soprava as velinhas do primeiro aniversário da Lava Jato, em 2015, quando Gilmar Mendes estreou suas críticas à operação. Ele negou a soltura de um grupo de empresários, mas disse que a duração das prisões preventivas decretadas por Sergio Moro estava “se aproximando do limite”.

O tom das reprimendas subiu desde então, e o tribunal se mexeu para impor freios a alguns métodos da equipe responsável pelo caso. Na prática, porém, a força-tarefa fez o que queria nos anos seguintes.

Como se sabe agora, o juiz da operação abandonou a neutralidade ao atuar em parceria com os acusadores. Indicou uma testemunha e deu conselhos antes de escrever suas sentenças. Descobriu-se ainda que o chefe dos procuradores tentou investigar ilegalmente ministros do STF considerados seus adversários.

O vazamento das conversas da força-tarefa deu materialidade à discussão sobre os limites ultrapassados em Curitiba. O Supremo, no entanto, deu sinais de que não sabe muito bem o que fazer a partir daqui.

Quando os primeiros diálogos foram publicados, Marco Aurélio disse que eles colocavam em dúvida a “equidistância do órgão julgador”. Acrescentou que isso seria tratado dentro dos processos da Lava Jato.

O próprio STF conseguiu atropelar o debate. Ao aproveitar um inquérito claramente abusivo sobre fake news para obter as mensagens hackeadas, Alexandre de Moraes tentou tomar um atalho para validar provas obtidas a partir de um crime.

A reação veio de Luís Roberto Barroso, que disse que essa agenda está “sequestrada por criminosos”. Ele certamente não quis insinuar que o Supremo deva se render aos arbítrios do outro lado. O ministro afirmou ainda que “há mais fofoca do que fatos relevantes” e reclamou da “euforia” causada pelos diálogos.

Obtidas ilegalmente, as mensagens ganharam vida própria desde que a sociedade passou a conhecê-las. O tribunal precisará enfrentar essa questão ou permanecer na apatia observada nos últimos cinco anos.

Conflito de interesses - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 04/08


O combate à corrupção e ao crime organizado, que se intensificou no país com a Operação Lava-Jato, entra agora, cinco anos depois, talvez na sua mais sensível etapa. Como aconteceu na Itália das Mãos Limpas, interesses diversos se uniram para tentar colocar limites à ação dos procuradores de Curitiba.

Uns com o intuito precípuo de não serem alcançados, ou conseguir a anulação das condenações, outros preocupados com supostas transgressões legais praticadas no que um dos seus mais contundentes adversários, o ministro do Supremo Gilmar Mendes chama de “o Direito de Curitiba”. Muitos, usando a segunda razão como escusa para atingir o primeiro objetivo.

Essa disputa de poder tem também o hoje ministro Sérgio Moro na alça de mira, e como em todas as etapas há conflitos de interesses, surgem paradoxos inevitáveis. Apoiador declarado da Operação Lava-Jato, o que explicitou ao convidar Moro para seu ministério, o presidente Bolsonaro acaba de dar novas cores à crise institucional em processo com a decisão de mudar o presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) Roberto Leonel, indicado por Moro quando o órgão era subordinado ao ministério da Justiça e Segurança Pública.

Moro pediu para ficar com o Coaf na montagem do novo ministério, órgão considerado imprescindível para o combate a crimes de colarinho branco e formação de quadrilha. Derrotado no Congresso, que transferiu o Coaf para a Fazenda, Moro terá nova derrota com a mudança de seu indicado, e pelas razões que se sabe.

A garantia de Bolsonaro de que nada mudaria no Coaf começa a desmoronar, e a pressão sobre o ministro Paulo Guedes coloca em xeque os outrora chamados superministros. Bolsonaro não gostou das críticas que Leonel fez à decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli de suspender as investigações baseadas em informações do Coaf sem autorização da Justiça.

A medida foi tomada a pedido da defesa de Flávio Bolsonaro, que está sendo investigado dentro de um processo que abrangeu diversos vereadores e funcionários da Assembléia Legislativa do Rio.

São conflitos de interesse que interferem nas investigações sobre corrupção, obstáculos paralelos aos que estão sendo colocados no caminho da Operação Lava-Jato pelo Congresso, que reluta em aprovar o projeto anticrime de Moro, e também pelo Supremo.

A decisão de requisitar os diálogos, áudios e vídeos hackeados que servem de base para as reportagens do site Intercept Brasil, que coordena a divulgação por outros veículos, teve objetivos distintos, embora tenham saído logo no primeiro dia de funcionamento do STF depois do recesso do Judiciário.

Ministro Luis Fux, provocado por uma ação do PDT, era obrigado a atuar. E o fez com o objetivo de preservar as provas para saber, inclusive, a origem delas para aferição da ilicitude. O ministro Alexandre de Moraes se baseou na publicação na Folha de S. Paulo para requisitar as provas integrais dentro do inquérito que preside no Supremo sobre “fake news”.

Implicitamente, está dando valor às provas conseguidas ilegalmente pelos hackers, embora não possa usá-las para acusar ninguém, especialmente o procurador Deltan Dallagnol, coordenador do Ministério Público da Lava-Jato em Curitiba.

Enquanto alguns esperam que do inquérito do Supremo surjam elementos para acusá-lo mesmo sem utilizar as provas, consideradas imprestáveis, outros ministros acham que ele não precisa ser afastado. Teria perdido já a legitimidade para exercer a função.

Os diversos atores dessa disputa de poder usam as armas de que dispõem para constranger adversários. O ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas, muito ligado a Gilmar Mendes, deu 15 dias para que a Receita Federal detalhe as investigações dos últimos cinco anos que envolvam autoridades do Legislativo, Executivo e Judiciário.

A Associação Nacional dos Procuradores teve o apoio da Procuradora-Geral da República Raquel Dodge no pedido para que o Supremo suspenda o inquérito que apura supostas ofensas aos ministros do STF. Que ela considerou um "tribunal de exceção".

“Não há com imaginar situação mais comprometedora da imparcialidade e neutralidade dos julgadores, princípios constitucionais que inspiram o sistema acusatório”, define Dodge. A mesma acusação que ministros do Supremo e a defesa dos acusados fazem a Moro, Dallagnol e aos demais procuradores de Curitiba.

Onde está o centro? - VERA MAGALHÃES

O Estado de S.Paulo - 04/08

Reações ainda tímidas aos arroubos autoritários de Bolsonaro mostram falta de alternativas



As últimas semanas foram inquietantes pela investida de Jair Bolsonaro, em ações e palavras, contra instituições, a ciência, o conhecimento, os fatos históricos e princípios como os da humanidade e impessoalidade. As reações começam a surgir por parte dos demais Poderes, como em boa hora mostrou o Supremo Tribunal Federal. Mas a maneira ainda tímida com que os partidos e lideranças políticas do chamado centro democrático se comportam diante dos arreganhos do presidente mostra que o Brasil está muito longe de construir uma alternativa viável a uma radicalização cada vez mais perigosa.

Na centro-direita, o governador João Doria Jr. e o ex-presidenciável João Amoêdo tratam de procurar se distanciar de Bolsonaro, delimitando as diferenças entre o discurso e a prática dos partidos que lideram e o bolsonarismo. Mas tanto o PSDB quanto o Novo estão entre as legendas que mais apoio empenharam aos projetos do governo no Congresso.

Imbuídos do dever de apoiar a pauta econômica de viés liberal de Paulo Guedes, os partidos de centro e de centro-direita muitas vezes dão maior sustentação às votações do Executivo que o canhestro PSL, balaio de gatos formado por pessoas que se filiaram na última hora para surfar a onda do “mito”.

O apoio no Congresso não impede que integrantes desse centro sejam diariamente hostilizados pelas hordas bolsonaristas a serviço da destruição de biografias, e que os partidos sejam estigmatizados como venais, fisiológicos, corruptos e outras tantas pechas – muitas das quais fizeram historicamente por merecer.

Eis uma armadilha crucial, da qual o tal centro parece longe de se livrar: ao apoiar, acertadamente, os projetos da pauta econômica liberal necessária para tirar o País da recessão legada pelo PT, está criando as condições para que Bolsonaro diga que fez tudo sozinho – afinal, ele não tem uma coalizão política – e se sinta “liberado” para impor sua agenda em todas as demais áreas.

Daqui a três anos, quando começar o processo sucessório, qual será a narrativa dessas siglas? Que projeto alternativo o centro terá apresentado a este que está em curso, que nega a ciência, o conhecimento, as liberdades, estigmatiza e persegue dissidentes, faz o elogio sem ressalvas de práticas como tortura, nepotismo, perseguição ideológica e aparelhamento do Estado? Que sucumbe e apequena as Forças Armadas? Que testa audaciosamente os limites dos demais Poderes, como bem salientou o decano do STF a este jornal?

Não adiantará apresentar vários nomes, com perfis e eleitorado que se sobreponham, e elencar as vezes em que, aqui e ali, soltaram notas oficiais ou repudiaram comportamentos específicos do presidente.

Bolsonaro só se transformou de deputado folclórico em presidente, numa trajetória que passou ao largo do radar de nós da imprensa e de seus pares da política, porque começou a caminhada anos antes, construiu uma base social sólida, encaixou um discurso (o antipetismo, de um lado, e a crítica difusa a um tal “politicamente correto”, de outro) e foi beneficiado pela perda de foco dos adversários.

Até aqui, ele segue firme nessa estratégia, mesmo blefando que não tem nenhuma, enquanto seus potenciais oponentes pisam em astros distraídos, ao centro, na centro-direita e, principalmente, na patética esquerda lobotomizada pelo “Lula livre”.

Nessa toada, os longos três anos e 5 meses que nos separam de 2022 serão esse desfile canhestro de imposturas presidenciais sem que o eleitorado que não coaduna com elas se veja representado por alguém que aponte um caminho em que a defesa do liberalismo econômico não seja desculpa para que se passe pano para o indefensável em todas as demais esferas da vida pública.

O clone da CPMF e a informalidade - AFFONSO CELSO PASTORE

ESTADÃO - 04/08

Taxar transações financeiras cria incentivo à multiplicação de notas sob o colchão


Uma das supostas vantagens do imposto sobre transações financeiras, IT, seria a redução da informalidade. Ao taxar todas as transações quitadas através de cheques, cartões de débito ou de crédito, ou quaisquer outros meios mais “modernos”, ninguém escaparia de sua incidência. É surpreendente que nenhum dos defensores desse imposto tenha atentado para o fato de que é fácil fugir de sua incidência: basta quitar as transações usando as nossas conhecidas “notas do meio circulante”: o bom e velho “papel moeda”.

Em um livro publicado em 2016 (The Curse of Cash, Princeton U.P., 2016), Kenneth Rogoff manifesta sua surpresa pelo fato de que, mesmo diante de formas modernas e eficientes de pagamentos, como as três acima enumeradas, às quais adiciono as transferências por computador e os telefones celulares, há nos vários países um aumento, e não uma redução, do estoque de papel moeda. Um mínimo de intuição é o que basta para concluir que diante de transferências por computador e telefones celulares, e diante da disponibilidade a custo extremamente baixo de cartões de crédito e de débito, deveria ocorrer uma redução, e não um aumento das notas do meio circulante em proporção ao PIB. O que explica essa anomalia?

Uma das causas desse crescimento está nas atividades criminosas, como o tráfego de drogas, o terrorismo e a corrupção, mas uma parte apreciável vem da chamada “economia subterrânea”, na qual para escapar ao alcance do fisco as pessoas (e empresas) envolvidas em pagamentos e recebimentos têm que manter o anonimato, utilizando para isso notas do meio circulante.

Rogoff apresenta estimativas sobre o tamanho das “economias subterrâneas” em vários países, que mesmo diante da possível margem de erro são muito grandes, quer onde as instituições são avançadas (EUA), quer onde são fracas (Turquia e Itália, por exemplo).

Preocupado com a perda de receita tributária, ele propõe que os países deveriam considerar a eliminação das notas de grande denominação. Sem elas, para armazenar os milhões de reais ali encontrados seria necessário um apartamento bem maior do que aquele, em Salvador, que nunca vai sair de nossa memória. Taxar transações financeiras cria incentivo à multiplicação de notas sob o colchão, aumentando, e não reduzindo a informalidade existente.

Mas não é só, e antes de prosseguir enfatizo que nenhuma destas formas “modernas” de quitar transações ocorre sem a presença de um intermediário financeiro – um banco –, e que é exatamente sobre estas operações que incide o IT.

Na América Latina há vários países que tiveram (ou ainda têm) experiências com este imposto. Além do Brasil, ele foi utilizado com alíquotas maiores ou menores na Argentina, Bolívia, Colômbia, Peru, Equador e Venezuela. Em artigo publicado em 2019 no Journal of International Money and Finance, Felipe Restrepo faz uma avaliação empírica extremamente cuidadosa dos efeitos da taxação de transações bancárias sobre o crédito bancário e sobre o crescimento industrial.

Antes de resumir seus resultados vou descrever um “experimento pensado” que permite avaliar o que pode ocorrer. A oferta de crédito, que é fundamental para financiar a produção e o consumo das famílias, não é uma consequência da benevolência do banqueiro, e sim de um processo no qual ao emprestar a uma família ou a uma empresa, cobrando juros, esta família ou empresa realiza pagamentos a outras pessoas e empresas, cujo valor parcialmente retorna ao sistema bancário na forma de depósitos a vista ou a prazo, que ficam disponíveis no banco para novos empréstimos, e assim por diante. Se o mundo de uma hora para outra resolvesse não utilizar mais os depósitos bancários, retendo apenas notas do meio circulante, desapareceriam todos empréstimos bancários, paralisando a produção!

Mas não precisamos chegar a este extremo para que os efeitos sejam muito negativos. Felipe Restrepo estimou para todos os países latino- americanos que usaram (ou usam) este imposto, qual é a redução quantitativa de crédito vinda do uso de papel moeda substituindo transações bancárias. São conclusões assustadoras: um IT com alíquota de 0,56% “leva a uma redução do crédito bancário para o setor privado em torno de 3,6 ponto porcentual do PIB, o que representa um declínio em torno de 15% no tamanho dos empréstimos em termos reais”.

É fácil ver os riscos e os custos que nos esperam se cairmos nessa “esparrela” simplista.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

Imposto Único, proposta para ser esquecida - CELSO MING

ESTADÃO - 04/08

O Instituto Brasil 200, presidido por Gabriel Kanner, defende a volta de uma nova CPMF, sob o nome de Imposto sobre Transações Financeiras (ITF)


A necessidade de taxar os serviços digitais que escapam à tributação é um dos pressupostos em que se apoiam os empresários reunidos no Instituto Brasil 200para defender a volta da CPMF, na condição de Imposto Único, que viria com o nome de Imposto sobre Transações Financeiras (ITF).

Esse imposto não seria cobrado apenas no saque de recursos do banco, como acontecia com a CPMF, mas também na entrada. Pretende atingir todos os pagamentos e incidiria tanto sobre quem paga quanto por quem recebe. Como é um tributo que viria para substituir cinco impostos federais (PIS, Cofins, IPI, CSLL e IOF) que alcançam cerca de 27% do PIB, teria que ter uma alíquota relativamente alta, avaliada em 2,8%, em cada ponta da movimentação financeira. Ou seja, em cada movimentação, o imposto total seria de 5,6%.

O presidente do Instituto Brasil 200, Gabriel Kanner, argumenta que esse novo imposto seria o único que alcançaria os novos modelos de negócio que estão se multiplicando com a revolução tecnológica e a intensificação do uso de aplicativos. E esse é o primeiro ponto altamente duvidoso. Esse imposto supõe alta bancarização, ou seja, que todo ou quase todo o sistema de pagamentos passe por alguma conta bancária. E o que se tem a dizer é que 60 milhões de pessoas no Brasil não possuem conta bancária e, por isso, não seriam alcançadas por esse imposto.

Além disso, se for instituído, esse imposto provocará necessariamente novo grau de desbancarização do sistema de pagamentos, como defesa espontânea dos contribuintes contra o agarrão do Fisco. Foi o que aconteceu nos países onde esse tipo de tributo foi criado.

Kanner argumenta que isso não aconteceu no Brasil quando vigorava a CPMF. Com base nesse precedente, entende que não acontecerá quando o Imposto Único estiver em vigor. No entanto, isso não aconteceu no Brasil por duas razões. Primeira, porque a alíquota era relativamente baixa; e, segunda, porque alcançava apenas a ponta pagadora da transação financeira e não a recebedora.

Nas novas condições, toda a atividade econômica se organizaria para fugir desse imposto por meio de mecanismos de pagamento que evitariam os bancos. Isso aconteceria por escambo (troca de mercadorias e serviços, para pagamento apenas por diferença); pré-pagamento, que evitasse taxação cumulativa em etapas intermediárias; verticalização de empresas, para transações apenas contábeis entre matriz e subsidiárias; e uso de moedas digitais. A libra, que será lançada em 2020 pelo Facebook e outras 26 grandes empresas de alta tecnologia, tem por objetivo declarado alcançar transferências e pagamentos fora do sistema bancário global, segmento estimado em mais de 2 bilhões de pessoas ao redor do mundo.

Ou seja, qualquer imposto sobre movimentação bancária poderia alcançar alguns negócios fechados por via eletrônica, mas não enquadraria a maioria. Como esses segmentos que escapam do Fisco poderiam vir a ser tributados é matéria de intensa discussão entre especialistas nos países avançados, sem que até agora tenham chegado a uma conclusão coerente.
Estrago no mercado de capitais

Dia 25, esta Coluna afirmou, também, que o Imposto Único provocaria grandes estragos no mercado de capitais, especialmente nas bolsas, porque encareceria insuportavelmente os investimentos: acrescentaria 2,8% de imposto em cada ponta de cada negócio. Kanner sugere que os investimentos financeiros fiquem de fora desse imposto. Cada investidor, diz ele, teria uma conta à parte nos bancos apenas para esse tipo de aplicação. É uma proposta impraticável, porque essa segunda conta poderia ser usada para movimentações que nada teriam com aplicações financeiras.

De mais a mais, investimento não acontece apenas na área financeira. Também avança para o mercado imobiliário, para despesas com reforma, compra de máquinas, etc.

Essas seriam apenas algumas das grandes distorções que esse tipo de imposto produziria. Ele subverteria a estrutura de preços relativos; incidiria cumulativamente (em cascata) na economia, o que é proibido pela Constituição; não poderia ser excluído dos preços dos produtos de exportação e, nesse caso, o Brasil acabaria por ter de exportar impostos; e encareceria dramaticamente as operações de capital de giro de curto prazo.

Entre as cinco propostas de reforma tributária hoje objeto de debates no Congresso e fora dele, esta aí, a do Imposto Único, deve ser esquecida.

O presidente mesa de bar - PEDRO DE SANTI

ESTADÃO - 04/08

Amplas parcelas da população sentem-se representadas pelo jeito ‘tiozão’ de Bolsonaro

Informal, irreverente e rude. Pelas controvérsias criadas, o presidente demonstra ter a mesma compostura de alguém no happy hour.

Há poucas semanas, o presidente Jair Bolsonaro comunicou que passaria por uma intervenção dentária e não poderia falar por três dias. Estava dada a piada pronta. Mesmo entre apoiadores, foi comemorado o intervalo sem declarações polêmicas. Seu disparo quase diário já é uma marca deste governo.

Mais que polêmicas, muitas das declarações têm um tom de grande informalidade e, por vezes, grosseria. Tudo parece fora do que se espera de alguém investido da posição de presidente da República.

Houve recentemente a referência aos governadores do Nordeste como “paraíbas”; assim como a fala sobre oferecer filé aos filhos sempre que puder, ao indicar um deles ao cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Ou dizer saber do fim que levou o pai desaparecido do presidente da OAB, Fernando Santa Cruz, preso durante a ditadura militar. Os exemplos se acumulam.

Como entender essa forma de narrativa?

Que efeito produz?

A intencionalidade dessa forma de comunicação só poderia ser conhecida com uma conversa com seu autor, o que não nos é acessível. Mas sabemos que o efeito polêmico é bem recebido. Ante a reação contra a indicação do filho para a embaixada, o presidente disse que, “se estão reclamando, deve ser uma coisa boa”.

As hipóteses extremas seriam: em primeiro lugar, a expressão de um homem simplório e inconsequente; e em segundo, um plano de comunicação muito bem orientado. Talvez tais hipóteses não sejam excludentes ou inteiramente certas, mas chamo a atenção para três dimensões psicológicas envolvidas.

Identificação – Enquanto boa parte da mídia e das pessoas repudia esse tipo de declaração, é evidente que há amplas parcelas da população que se sentem representadas pelo conteúdo e pela forma a que o presidente recorre. Esta é a dimensão populista de sua figura: ele fala “perto” de muitas pessoas que se viam sem voz. Pense-se no debate sobre o “politicamente correto”, no qual certos estratos sociais se afirmavam no estabelecimento de uma nova norma discursiva. O presidente restitui a voz aos recém-oprimidos em sua expressão de valores.

Muitos se perguntaram por que, nas últimas eleições, existindo outras candidaturas consideradas de direita, como Henrique Meirelles e Geraldo Alckmin, com uma postura sóbria, as intenções de voto se dirigiram a Bolsonaro. Talvez aqui tenhamos uma reposta: ele é próximo ao homem comum, que se pode ver representado nele, algo impossível na formalidade e falta de carisma de Meirelles e Alckmin. Nisso, sem dúvida, Bolsonaro replica e se identifica com seu inimigo número um: o ex-presidente Lula. Este também foi famoso por declarações polêmicas e um jeito popular de se portar e comunicar.

Distração – Outro efeito claro das declarações polêmicas é o de distrair a atenção de temas nacionais de maior peso, ou mesmo de problemas envolvendo o governo e familiares do presidente. Parece estranho um presidente se dedicar pessoalmente à legislação sobre o uso de cadeirinhas para crianças nos carros ou que tipo de filme merece financiamento público. Uma vez mais, essa ocupação com o “varejo” tem um tom populista e de distração. A referência histórica, agora, é Jânio Quadros, genial em se tornar notícia, por exemplo, ao proibir o uso de biquínis.

As distrações ocupam muito espaço na mídia e nas redes sociais e produzem muito ruído.

Ressentimento – A forma por vezes grosseira, que parece desprezar tradição política, institutos de pesquisa e conhecimento acadêmico, também parece ser a expressão de um sentimento popular: a exaustão geral com a forma como a política foi exercida nas últimas décadas. Nossa frustração social e econômica parece ter encontrado um vilão nos donos anteriores do poder: os políticos profissionais, as autoridades intelectuais institucionais. É como se, num grande grito de ressentimento, o homem comum gritasse: “Chega! Vamos voltar a um modo mais simples de pensar e funcionar”. A decepção real com a Nova República resulta numa raiva muito grande com tudo o que ela representou. Há um repúdio ao intelectualismo do PSDB, ao discurso ideológico do PT e à política tradicional como um todo. Teríamos, então, a narrativa de um presidente que se vê como um outsider que chegou ao poder. Há algo de punk naquele discurso, que cospe na cara das convenções.

Brilha, então, o discurso de um homem comum, que fala como se estivesse sempre num ambiente informal – o “tiozão do churrasco”, como tem sido dito –, a disparar suas opiniões e vociferar contra as instituições. Ele soa como alguém que vai fazer o que precisa ser feito, passando por cima de entraves burocráticos ou legais. Sua comunicação é direta, por mídias sociais, ao largo da mediação da imprensa. Esse é o campo em que o populismo desliza para o autoritarismo.

Por fim, há também a facilidade com que desdiz o que disse, num mesmo dia. As falas parecem balões de ensaio que, em função da recepção, são sustentadas ou negadas. Mas esses balões de ensaio estendem o campo do “novo normal” e se corre o risco de deixar de perceber o reposicionamento moral e ético que está sendo operado.

Tudo leva a crer que esse discurso fortalece o núcleo duro daqueles que com ele se identificam, mas, enquanto isso, parece corroer pelas bordas quem não se sente representado por aqueles valores e tem uma atitude mais moderada. Identificar-se com valores conservadores é uma coisa, com um discurso de ódio é outra.

Os estudos de marketing político costumam dizer que o principal elemento para a popularidade de um político com mandato é a situação econômica. É um bom aprendizado acompanhar em que medida um discurso que mobiliza paixões tão primitivas interfere na avaliação do presidente.

PSICANALISTA, É PROFESSOR DA ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING (ESPM-SP)

Murro em ponta de faca - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 04/08

O recado do STF é claro: ou o governo Bolsonaro põe freios ao seu voluntarismo, ou eles terão de ser impostos


No dia 1.º de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) referendou uma liminar concedida em junho pelo ministro Luís Roberto Barroso suspendendo um trecho da Medida Provisória (MP) 886 que transferia a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. É a segunda derrota do governo na Corte. Na primeira, o plenário determinou que ele não poderia extinguir conselhos de políticas públicas que tenham sido criados por lei. Ambos os casos têm em comum a tentativa do Poder Executivo de atropelar prerrogativas do Legislativo. Não surpreende que em ambos a decisão do plenário tenha sido por unanimidade. O recado, dado logo na retomada das atividades após o recesso, é claro: ou o governo Bolsonaro põe freios ao seu voluntarismo ou eles terão de ser impostos, ostensivamente se necessário, pela Corte constitucional, com todo o desgaste ficando na conta do Executivo.

O confronto com o Congresso data do primeiro mês de governo. Em janeiro, o presidente Jair Bolsonaro editou uma medida provisória que reestruturava as pastas ministeriais. O texto foi aprovado pelo Congresso, com alterações. Entre elas, vetou-se a transferência da competência para a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. Na mesma sessão legislativa, o governo editou nova medida provisória, retomando a transferência.

Diante disso, quatro partidos ajuizaram ações diretas de inconstitucionalidade. Em junho, o relator das ações, ministro Luís Roberto Barroso, suspendeu liminarmente os efeitos da MP. “Houve uma manifestação expressa e formal do Congresso Nacional no sentido de rejeitar esta proposta legislativa do presidente da República”, disse o relator na ocasião. “Houve, no mesmo dia, a edição de nova MP, de número 886, para reincluir matérias que haviam sido rejeitadas.” Trata-se de uma flagrante infração ao artigo 62 da Constituição, que em seu parágrafo 10 aponta que “é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada”.

A Advocacia-Geral da União (AGU) alegou que a demarcação de terras indígenas tem sido feita sem planejamento estratégico, sob pressão de grupos de interesse, por uma Funai deficiente em recursos humanos e orçamentários. Não importa. O problema é anterior ao mérito. O governo tem todo o direito de defender o seu arranjo como o mais eficaz e melhor para o interesse público. Há inclusive bons argumentos nesse sentido. Mas uma vez que a matéria foi proposta por medida provisória e rejeitada pelo Congresso, ela só pode ser reposta através de projeto de lei.

No plenário do STF, coube ao decano, o ministro Celso de Mello, dirigir palavras duras ao governo. “O comportamento do atual presidente”, disse em seu voto, “traduz uma clara, inaceitável transgressão à autoridade suprema da Constituição Federal e uma inadmissível e perigosa transgressão ao princípio fundamental da separação de poderes.” Comportamentos desse tipo, segundo o ministro, expõem o regime de governo e as liberdades da sociedade civil “a um processo de quase imperceptível erosão, destruindo-se lentamente e progressivamente pela ação ousada e atrevida, quando não usurpadora, dos poderes estatais, impulsionados muitas vezes pela busca autoritária de maior domínio e controle hegemônico sobre o aparelho de Estado e direitos e garantias básicas do cidadão”.

O episódio seria mais uma instância do voluntarismo legiferante do presidente Bolsonaro, se não tivesse sido marcado por um desfecho inédito e extraordinário: um ordinário pedido de desculpas. “Houve falha nossa. Falha minha, né. É minha, porque eu assinei (a MP)”, disse Bolsonaro no dia seguinte. Mesmo que o recado tenha sido unânime por parte dos 11 ministros da Suprema Corte, considerando o histórico de Jair Bolsonaro de deslegitimar tudo e todos que contrariam as suas opiniões, não deixa de ser um gesto surpreendente. Com isso, o País só tem a ganhar.

Disparates - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 04/08

Governo oscila entre o desatino de quem não sabe o que fala e a boa intenção de seus auxiliares


O inferno é povoado por mal-intencionados. Pouco se menciona, porém, os que de boa-fé abrem as portas das trevas; aqueles que, imbuídos das melhores intenções, por vezes causam malefícios de fazer inveja aos anjos tortos.

Foi um desses anjos que propôs a Deus submeter Jó a muitos infortúnios de modo a testar a sua fé.

Esse drama bíblico foi reescrito por Goethe. Dessa vez, a vítima foi Fausto, homem desejoso do conhecimento e da realização, mesmo que em troca da sua alma ao diabo.

Goethe foi generoso e, no fim, tudo termina bem. Como em Jó, o diabo é enganado, o bem triunfa e o velho Fausto vai para o céu, depois de muitas provações e demasiados equívocos. Pena que na vida real nem sempre seja assim.

O novo governo oscila entre o desatino de quem não sabe muito bem do que fala e a boa intenção dos seus auxiliares.

Poucos impressionam pelo saber do ofício, como Rogério Marinho e Mansueto.

A condução da reforma da Previdência e os alertas sobre a situação fiscal contrastam com as muitas promessas de pílulas contra o câncer.

Nada mais fácil do que constranger os aliados com a lembrança dos argumentos recentes do mandatário e dos seus filhos. O núcleo íntimo parece não saber dos desafios que o país enfrenta e fica a inventar polêmicas descabidas que combinam insensatez com brutalidade.

Em meio ao destempero, o governo anunciou propostas para melhorar o ambiente de negócios. A intenção é bem-vinda, pois a burocracia tortuosa dificulta o empreendedorismo e a criação de empregos.

A agenda de aumentar a liberdade econômica e de promover maior abertura comercial procura reduzir os empecilhos que nos têm condenado à estagnação.

O diabo, porém, mora nos detalhes.

O governo tem tido dificuldade em implementar suas promessas, como zerar o déficit primário, “meter a faca” no Sistema S e obter R$ 1 trilhão com privatizações e outro trilhão com venda de imóveis, para citar apenas alguns exemplos.

A proposta de desvinculação de R$ 1,5 trilhão promete muito, porém vai entregar pouco. Afinal, quase todo o orçamento está comprometido com gastos que não podem ser reduzidos por força da Constituição. Melhor tomar cuidado com anúncios que animam plateias, mas se revelam castelos de areia.

Isso tudo depois de muitos disparates, como as propostas de nova CPMF e de moeda comum com a Argentina, o peso-real. Vai valer a inflação de 40% ao ano do país vizinho ou a nossa, de 4%?

Os crentes deveriam ler com cuidado as cláusulas do contrato antes de entregar as suas almas.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Ele é assim mesmo, mas é estratégia - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 04/08

Há uma estratégia para lá de bem-sucedida no estilo inflamado e provocador do presidente Jair Bolsonaro

‘Sou assim mesmo. Não tem estratégia’, disse o presidente Jair Bolsonaro à repórter Jussara Soares. Meia verdade, ele é assim mesmo, mas há uma estratégia para lá de bem-sucedida, no seu estilo inflamado e provocador.

Em 2005 ele era um deputado periférico, havia defendido o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso e foi entrevistado por Jô Soares (o vídeo está na rede). A conversa durou 21 minutos. Lá pelo final (minuto 19:00), Jô tocou na ideia de se passar FH pelas armas e Bolsonaro respondeu, rindo:

“Se eu não peço o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, você jamais estaria me entrevistando aqui agora”.

Bingo. Se Bolsonaro não tivesse falado do desaparecimento de Fernando Santa Cruz, talvez houvesse mais gente falando dos 12 milhões de desempregados. Essa é a parte do comportamento do atual presidente que pode ser chamada de estratégica. A outra é a sua maneira de ser, e nela há dois componentes. Numa estão suas opiniões, que como as de todo mundo, podem mudar. Noutra estão os seus próprios fatos, que são só dele.

Quando Jô classificou a ideia da execução de FH como “barbaridade” , Bolsonaro explicou:

“Barbaridade é privatizar a Vale do Rio Doce, como ele fez, é privatizar as telecomunicações, é entregar as nossas reservas petrolíferas para o capital externo.”

Mudou de opinião, tudo bem.

Bolsonaro, contudo, tem seus próprios fatos, que não fazem parte do mundo real. Ele não sabe como militantes da APML mataram Fernando Santa Cruz, porque isso não aconteceu. Na mesma entrevista com Jô, Bolsonaro relembrou um crime cometido por terroristas que acompanhavam Carlos Lamarca.

No mundo do fatos, em maio de 1970, Lamarca e um grupo de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária que treinavam técnicas de guerrilha no Vale do Ribeira foram descobertos e enfrentaram um pelotão da Polícia Militar comandada pelo tenente Alberto Mendes Júnior. A tropa se rendeu e o tenente ofereceu-se para ficar como prisioneiro, em troca da libertação dos sargentos, cabos e soldados. Dias depois, no meio da mata, os cinco captores que conduziam o tenente viram que ele seria um estorvo, capaz de denunciar sua localização. Decidiram matá-lo e um deles (Yoshitame Fujimore) abateu-o, golpeando-o na cabeça com a coronha de um fuzil.

(Meses depois, um dos captores de Alberto Mendes foi preso, localizou a sua cova e foi libertado em 1979, pela anistia. Em 1967, na Bolívia, o Che Guevara capturou 30 militares, não matou ninguém.)

A cena do assassinato do tenente não bastou ao deputado Bolsonaro. Com seus próprios fatos, ele disse a Jô que “Lamarca torturou-o barbaramente, fez com que ele engolisse os próprios órgãos genitais e o assassinou a coronhadas”. (Minuto 9:00)

Bolsonaro tirou os detalhes escatológicos do acervo de barbaridades do Exército japonês durante a Segunda Guerra e ainda assim exagerou ao nível da inverossimilhança, pois nenhum homem consegue engolir seus órgãos genitais. Ao fim das contas, em 2005, como hoje, era estrategia, mas “sou assim mesmo”.

Moro na vazante
Durante cinco anos o juiz Sergio Moro surfou na boa vontade da imprensa. Como ministro, virou vidraça e está enfrentando a maré baixa da pior maneira possível. Coloca-se no papel de vítima reclamona.

Não funciona, até atrapalha.

Diplomacia do Caveirão
Em 1996 o Paraguai estava às vésperas de um golpe. O presidente Juan Carlos Wasmosy veio secretamente a Brasília e costurou um entendimento com Fernando Henrique. Com o apoio brasileiro garantido, demitiu o comandante do Exército, general Lino Oviedo.

A operação foi conduzida por uns poucos diplomatas do velho Itamaraty e só foi conhecida anos depois.

Há poucos meses, em surdina, a diplomacia do atual governo assinou um acordo com o governo do Paraguai para redefinir tarifas da hidrelétrica de Itaipu.

Os çábios acharam que um acerto de tarifas poderia passar despercebido. Resultado: caíram o chanceler paraguaio e uma penca de burocratas. O próprio presidente Mario Abdo Benítez ficou com o mandato a perigo, revogou o acerto e o Brasil meteu-se numa encrenca.

Há mais de meio século o Brasil negocia Itaipu com luvas de pelica, evitando atropelar o Paraguai. Em apenas seis meses o estilo “Caveirão” da diplomacia de Bolsonaro transformou a hidrelétrica num contencioso nacionalista.

Madrinha dos desmatadores
Para sorte de seus leitores, Fernanda Torres cruzou com a história de Pauline Fourès. Bonita mulher nos seus 20 anos, ela acompanhava o marido, tenente do Exército francês, na força expedicionária que Napoleão levou para o Egito em 1798. Ao saber que estava sendo corneado por Josephine em Paris, o general transferiu o oficial e ficou com Pauline, a esta altura apelidada de Cleópatra.

Está nas livrarias, e na rede, “Napoleon” do inglês Andrew Roberts, magnífica biografia, onde vai contada mais um pedaço da História: Napoleão ferrou-se e em 1816 Pauline veio morar no Rio de Janeiro, onde viveu por 21 anos e fez fortuna exportando madeira de lei e importando móveis. Voltou para a França, andava com um papagaio e um macaco, fumando. Morreu em Paris aos 91 anos.

Para quem acha que Napoleão tinha algo de maluco, Roberts lembra que, ao seu tempo, a Inglaterra, Portugal e Dinamarca tinham monarcas doidos. Em 1840, 19 anos depois de sua morte, quando ganhou sepultura em Paris, num só hospício havia 14 pessoas dizendo que eram Napoleão.

Descuido
Um descuido cenográfico colocou Eduardo Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão em posições ridículas. Ambos posaram ao lado do empresário indonésio Jackson Wijaya segurando um imenso cheque-fantasia que simbolizaria o investimento de sua fábrica de celulose no Brasil. O “checão” do vice-presidente era de R$ 27 bilhões. O do 03 ficou em R$ 31 bilhões. Mourão estava em viagem oficial, o 03 estava de férias, atrás das boas ondas dos mares indonésios. Palhaçada.

A empresa de Wijaya está metida num litígio com a JBS, submetido a um tribunal arbitral. Não é adequado que o empresário indonésio saia por aí fabricando selfies típicos de programas de auditório.

Mourão e 03 poderiam seguir o exemplo do Papa Francisco quando ele era arcebispo de Buenos Aires. O cardeal Bergoglio tinha um monsenhor encarregado de evitar que empresários de má fama se aproximassem dele para tirar retratos.

Poder dos índios
Bolsonaro deve calibrar melhor suas falas, sobretudo se acredita na capacidade de seu filho de atrair mineradoras americanas para a Amazônia.

Um empresário que tem grandes negócios internacionais da região informa:

“Se aparecer um índio na nossa assembleia de acionistas mostrando fotografias e dizendo que o projeto lhes é hostil, bye bye.”

Brasília em chamas - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 04/08

Supremo dá recados fortes a Bolsonaro, mas os dois lados miram o mesmo alvo: o Coaf



Agosto começou quente e Brasília está em chamas. Não bastasse a seca inclemente que assola a capital da República nesta época do ano, o Supremo reabriu impondo derrotas ao governo Bolsonaro, já no primeiro dia do mês e do semestre do Judiciário, mas com um movimento estranho, intrigante: a confluência de interesses entre Supremo e o próprio Bolsonaro quando se trata de Coaf. Aí, é o ministro Sérgio Moro quem arde.

No 1.º de agosto, o Supremo fez um “strike”. Derrubou uma medida provisória de Bolsonaro, falou grosso sobre o desrespeito aos Poderes, proibiu a Receita de investigar seus ministros e familiares e confrontou Moro ao proibir a destruição das mensagens captadas pelos hackers e exigir cópia de toda a papelada. O Executivo não terá mais acesso exclusivo às conversas que vêm sendo divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Como na Guerra Fria, os dois lados agora têm bomba atômica.

O arsenal do Supremo, porém, não para aí. Na pauta deste semestre, há o pedido de suspeição do então juiz Moro no processo que levou o ex-presidente Lula à cadeia, há a decisão monocrática do presidente Dias Toffoli de suspender todos os processos com dados do Coaf sem autorização judicial e, “last but not least”, paira no ar a delicadíssima questão da prisão após condenação em segunda instância. Todas com potencial de querosene na fogueira.

Nos holofotes, duras críticas a Bolsonaro e à “transgressão” contra a independência dos Poderes, como bem bradou o decano Celso de Mello. Nos bastidores, intensas articulações para dar um basta na desenvoltura do procurador Deltan Dallagnol, que acumula a dupla condição de porta-voz da Lava Jato e pivô da crise dos hackers e que ousou brincar de investigar as mulheres de ministros da mais alta Corte do País – com direito a posteriores vazamentos para a imprensa.

Num ponto, porém, Bolsonaro e Supremo parecem mirar o mesmo alvo: o Coaf, o órgão de inteligência financeira que detecta movimentações de grandes somas de dinheiro sem explicação aparente, e que, por exemplo, foi quem flagrou aquelas esquisitices do gabinete do filho “01” do presidente, o hoje senador Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio. Para quem se elegeu apontando o dedo contra todo mundo, não ficou muito bem.

Ao aceitar a Justiça, Moro só fez uma exigência: atrair o Coaf para o seu ministério. Assim foi feito no início, mas ele depois não só perdeu o Coaf como agora, como informa a repórter Thais Arbex, pode perder o seu escolhido para comandar o órgão, Roberto Leonel, auditor da Receita que participou diretamente da Lava Jato e atua há décadas em lavagem de dinheiro a partir de Curitiba.

Então, ficamos assim: o Coaf sai da Justiça, Dias Toffoli corta as suas asinhas ao bloquear os processos com base em seus achados e Bolsonaro completa o serviço trocando o chefe do órgão, parceiro de Moro. É isso mesmo? O Coaf, que tanta importância deveria ter assumido com Moro na Justiça, só vai minguando... E, com ele, a Lava Jato e o próprio combate à corrupção em suas diferentes frentes e diferentes dimensões.

Amazônia. Bolsonaro diz que os dados do Inpe sobre desmatamento “denigrem a imagem do Brasil lá fora”, mas muita gente boa acha que quem denigre é o próprio Bolsonaro, ao querer esconder a verdade, anunciar mineração americana em terras indígenas, cortar cabelo na hora da audiência a um ministro da França, demitir em seu próprio favor o fiscal que cumpriu seu dever ao multar pesca em área proibida e, enfim, ao dar tantos passos retrógrados numa área em que o Brasil é superpotência: o meio ambiente. A verdade dói, a mentira destrói.

Na minha experiência... - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 04/08

Somos uma espécie que, entre ideias que nos são caras e fatos, ficamos com as ideias


Como acontece sempre que falo mal da homeopatia, minha caixa postal ficou atulhada de emails de usuários e de médicos homeopatas relatando suas experiências positivas com a prática. Não duvido da boa-fé dos que me escreveram, mas desconfio da psique humana. Basicamente, nossos cérebros enxergam aquilo que querem ver.

Um bom exemplo disso em medicina são as sangrias. Durante milhares de anos, do antigo Egito à América oitocentista, sangrar pacientes foi um dos principais tratamentos utilizados. Embora possamos conceber duas ou três afecções em que a redução da volemia seja benéfica, não há hoje dúvida de que as sangrias mataram muito mais gente do que salvaram. Vítimas ilustres incluem George Washington e Mozart.

Os médicos, porém, juravam que o método funcionava. Eles enxergavam sucesso porque, para quem concebia a doença como um desequilíbrio humoral, tirar o “excesso” de sangue fazia todo o sentido. Outros tratamentos populares eram provocar vômitos e diarreias.

A história só muda no século 19. Em 1828, o médico francês Pierre Charles Alexandre Louis publicou um estudo demonstrando com números que as sangrias eram inúteis no tratamento de pneumonias.

Eu adoraria poder escrever que os médicos se dobraram ao peso das evidências e abandonaram a prática milenar. Mas não foi o que aconteceu. Ao contrário, eles resistiram, preferindo a tradição e suas experiências pessoais às contas de um francês obscuro. Aos poucos, porém, à medida que novas teorias sobre a doença ganharam força e estudos estatísticos se popularizaram, as sangrias foram sendo deixadas de lado.

A triste verdade é que somos uma espécie obstinada que, entre ideias que nos são caras e fatos, ficamos com as ideias. A melhor forma de escapar a essa armadilha é submeter nossas teses a rigorosos controles empíricos e confiar neles, mesmo que desmintam nossas “experiências pessoais”.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…"

Falta fazer - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

O GLOBO - 04/08

Não basta a boa economia, é preciso o bom governo e a boa sociedade


No artigo anterior escrevi sobre o Plano Real. E no pós-Real? Muita coisa mudou na economia, na política e na sociedade. O pesadelo da inflação e da dívida externa ficou no passado. Políticas universais de educação e saúde se estruturaram e programas de transferência de renda para os mais pobres se estabeleceram. Houve alguma melhoria — nunca suficiente – na renda do trabalhador. Falta ainda algo essencial: taxas de crescimento contínuas que — mesmo sem serem espetaculares — permitam oferecer mais emprego e renda. Para isso, o ordenamento das contas públicas, conquista perdida nos governos do PT, é condição necessária. Os passos iniciais para sua recuperação foram dados com a reforma da Previdência.

Nem tudo, porém, depende só de nós. Exemplifico: foi o entendimento dos Estados Unidos com a China, levado a efeito pela dupla Nixon/Kissinger, que assentou as bases da estabilidade e do crescimento mundial nas décadas seguintes. Os benefícios plenos daquele entendimento se concretizaram depois que Gorbachev desencadeou um processo de mudança que resultou na queda do Muro de Berlim e no colapso da União Soviética, facilitando a ampliação da União Europeia e pondo fim à Guerra Fria. Nesse contexto, aos poucos, a ideologia terceiro-mundista foi se debilitando, abrindo espaço para uma nova era de convivência entre os países: a da globalização. Com ela a pobreza mundial diminuiu, houve intensificação do comércio internacional e algumas nações da periferia mundial aproveitaram para se integrarem nas cadeias globais de valor.

Entre nós os efeitos da estabilização e da maior integração econômica tornaram possível difundir políticas sociais inclusivas e introduzir tecnologias de ponta na agricultura, na mineração e nos setores financeiros, bem como em alguns processos industriais. Nossas exportações, que ainda são modestas, tiveram chance de expansão, em particular durante o boom das commodities. Em conjunto isso deu a sensação de que “chegara a vez do Brasil”.

Infelizmente a má condução da economia, na última parte do governo Lula e no de Dilma, mergulhou o país na pior recessão de sua História, da qual nos recuperamos lentamente, a despeito dos esforços do governo Temer. É cedo para ver se o atual governo logrará retomar o crescimento econômico e praticar políticas inclusivas. O desaguisado inicial lança dúvidas sobre tal desfecho. Faltam estratégias que deem ao povo o sentimento de que “desta vez vamos”. Mais ainda. Na era da globalização as tecnologias de produção e comunicação estão sujeitas a renovações constantes. Tudo depende de avanços científicos e tecnológicos e da capacidade dos governos de os anteverem e criarem condições para sua vigência. Os sinais dados até agora são desanimadores.

O futuro é incerto: há retrocesso no plano internacional. Além da vaga populista de direita ser crescente, o entendimento sino-americano tropeça na rudeza “trumpista”, com a qual fazem coro os autoritários da direita mundial. Abrem-se assim espaços para a reaproximação da Rússia com a China.

Imaginava-se em passado recente que no Ocidente predominariam os valores de um liberalismo progressista com a aceitação das diferenças, a valorização da pessoa humana e o apoio a políticas sociais inclusivas. Acreditava-se que os mercados, instrumentos do êxito econômico, não implicariam no desfazimento da ação política e do papel dos estados. Era o sonho da Terceira Via. Vê-se agora a revitalização de forças opostas a esta visão. Forças que não são liberal-conservadoras, normais nas democracias, mas reacionárias, atrasadas.

É neste contexto que, com realismo e sem utopias regressivas, as agremiações políticas brasileiras terão de se reposicionar. Frente ao liberal-autoritarismo é preciso insistir no liberal-progressismo. Este não pensa apenas nas pessoas e em sua liberdade (valor essencial), mas também no conjunto da população. Supõe consequentemente uma ação pública sinalizadora para os mercados e redutora de desigualdades da sociedade. Ações que, sem arbitrariedades políticas, promovam a capacidade e o bem-estar das pessoas, redistribuam renda e preservem o meio ambiente.

Há muito a pensar e fazer. Não basta a boa economia, é preciso o bom governo e a boa sociedade. Sem isso as nuvens do mundo, já carregadas, despejarão mais água na chama de um futuro melhor para o país e as pessoas.

Nossos partidos políticos ficaram aquém das expectativas. Sem falar na desilusão que foi o PT, mesmo o PSDB e o PMDB, um social-democrata, outro democrático-popular, se enredaram na teia das corrupções, magnetizados pelo estatismo, fiador do patrimonialismo. A social-democracia envelheceu sem responder aos desafios das “sociedade em redes”: os contatos diretos voltaram a valorizar as pessoas, as novas formas de produção estagnaram a renda das classes médias e aumentaram as desigualdades. O populismo do passado, integrador das massas na política, deu passo à arrogância do populismo de direita, que espalhou o medo do imigrante, da violência e das mudanças.

Os movimentos políticos renovadores estão organizando-se fora dos partidos. Entretanto, a democracia política requer formas institucionalizadas de ação. Que fazer? Renova-se a pergunta. Ainda haverá partidos capazes de se reinventarem? A “nova política” dispensará partidos e será simbolizada apenas por líderes? Esse impulso carismático escapará de ser outra versão de fascismo? Duvido.

Chegou a hora de refazer percursos, de reconhecer erros e assumir, sem oportunismo, posições políticas condizentes com o estilo de produção, sociabilidade, comunicação e modo de agir contemporâneos. Em vez de aderir de corpo e alma ao “trumpismo” ou de sonhar com um estatismo caduco, é melhor agir em defesa dos interesses nacionais e populares, com postura não agressiva, mas altiva. Mãos à obra, repito.

sábado, agosto 03, 2019

Bozo! Tá com piriri verborrágico! - JOSÉ SIMÃO

FOLHA DE SP - 03/08

Acho que ele comeu muito agrotóxico! Tem que dar um tiro de calmante nele


Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República!

Piada Pronta: “Ginasta Flavinha cresce 12 cm no Peru”. Eu também! Rarará!

Agosto! O mês do Bozo Louco! O Bozo sabe até como o pai do presidente da OAB morreu na ditadura, mas não sabe onde tá o Queiroz! Rarará!

E o novo apelido do Deltan: cobra com cara de Nossa Senhora! Vai acabar lavando as capas dos veinhos do Supremo! E em 2020 vai ter mais índio no sambódromo que na Amazônia. “Corra Que o Garimpeiro Vem Aí, Parte 4!”

Semana puxada: o Bozo com piriri verborrágico! Acho que ele comeu muito agrotóxico! Em dois dias insultou o mundo! Tem que dar um tiro de calmante nele, aquele que bota elefante pra dormir na Nat Geo Wild! Rarará!

E o Moro vai ao psicanalista e vaza a conversa: “Conte-me tudo desde o início”. “No início, eu criei o céu e a terra.” E depois, a portaria 666! Rarará! Moro não pensa que é Deus, ele tem certeza. Rarará!

E o Witzel anuncia prender quem fumar maconha na praia. Já separou o Maracanã pra prender todo
mundo? Maconheiro não oferece perigo! Já viu maconheiro fã do Belo, do Biel e do Munhoz & Mariano? Rarará!

E eu tenho um amigo que todo dia me liga da França: “Qual foi a de hoje?”. A de hoje foi “Bolsonaro quer rever conceito de trabalho escravo”. Revogou a Lei Áurea. A princesa Isabel era petralha! Rarará!

E atenção! MEME DO FGTS! Do @memesesquerdopatas com o Véio da Havan gritando: “Pegue os seus R$ 500 e venha comprar uma mamadeira de piroca na Havan!”. Eu acrescentaria: “Venha sem susto! Na Havan a Terra é plana!”. Rarará!

“Parentes de Bolsonarao vão de helicóptero da FAB pro casamento do Eduardo.” Mamamacóptero! Problema ético e estético: como o primo vai pro casamento de terno preto, camisa vermelha e óculos escuros? Zero pro primo do Zero Três! E sabe como o primo chamou a família pra entrar no helicóptero? ”MARCHANDO.” Rarará!

Pan no Peru! A boa notícia é que ganhamos 20 medalhas de ouro. E a má notícia é que o Guedes vai confiscar o ouro todo! “Atleta brasileiro é tricampeão panamericano em levantamento de peso.” Levantou o Maia, o Alcolumbre e a Joice Hasselmann! Rarará!

Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

José Simão
Jornalista, precursor do humor jornalístico

O mito do 'pires na mão' - MARCOS MENDES

FOLHA DE SP - 03/08

'Mais Brasil, menos Brasília' poderia virar 'Menos despesa, mais eficiência'


Na coluna anterior, afirmei que existe uma lenda urbana segundo a qual as receitas tributárias são muito concentradas nas mãos da União. Os estados e os municípios ficariam sem recursos para cumprir suas obrigações. Daí a necessidade de "ir a Brasília de pires na mão".

A hipossuficiência financeira é usada como argumento em causas judiciais contra a União, em projetos de lei para aumentar transferências e para socorros em geral.

Os municípios já institucionalizaram o "ritual do pires na mão", ao criar a Marcha Anual dos Prefeitos a Brasília. Chegam aos milhares, com uma lista de pedidos debaixo do braço.

Os dados não confirmam a tese da centralização. Pelo contrário. A Federação brasileira é uma das que mais descentralizam receitas no mundo.

De acordo com comparativo internacional feito pela OCDE, com dados de 2013, em países federativos, como o Brasil, a média da participação dos governos subnacionais na arrecadação tributária total é de 49,5%. Nos países da mesma faixa de renda do Brasil (renda média-alta), 30,9%. No Brasil, muito mais alta: 56,4%.

Em termos de receita como proporção do PIB, nossa forte descentralização também sobressai. Nos países federativos, os governos subnacionais ficam com 17,4% do PIB. Nos de renda média-alta, 13%. No Brasil, 22%.

Lembremos, ainda, que parte significativa da receita da União é, na verdade, do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Esse dinheiro vai diretamente para pagar benefícios previdenciários e não fica disponível para o governo federal. Deduzindo a arrecadação do RGPS, a divisão da receita restante é 36% para a União, e 64%, para estados e municípios. Não há concentração na União.

Um indicador da abundância de receitas para estados e municípios é a sem-cerimônia com que eles abrem mão do poder de tributar: 35% dos municípios brasileiros arrecadam menos de R$ 10 per capita em IPTU. Os estados, ao conceder benefícios fiscais, abrem mão de algo como R$ 60 bilhões por ano em receitas do ICMS, tributo de maior poder arrecadatório do país.

Vale lembrar, ainda, que parte significativa dos serviços estaduais e municipais em saúde e educação é custeada por recursos federais. Em 2018, dos R$ 127 bilhões gastos pelo Ministério da Saúde, nada menos que R$ 78 bilhões (60% do total) foram transferidos a estados e municípios.

Na educação, do gasto federal total de R$ 143,6 bilhões, 25% foram entregues aos estados e municípios (R$ 36,4 bilhões).

Há muita receita ociosa nas mãos de municípios. Falta capacidade técnica para executar projetos financiados por transferências federais. Atualmente, são R$ 6 bilhões parados nessa situação.

Há quem argumente que o problema não está no nível de receita, e sim no fato de os estados e os municípios terem obrigações de despesa maiores que suas receitas. Mas, nesse caso, a União também está apertada. O governo federal registra seguidos déficits primários, mesmo depois de cortar fortemente investimentos e despesas não obrigatórias. Não há receita sobrando no governo federal. O que há é excesso de despesas nos três níveis de governo.

Fala-se, também, que a União tem que ajudar porque ela tem maior capacidade para se endividar e só ela é capaz de emitir moeda. Usar esse tipo de raciocínio é reconhecer que não há outro caminho para sustentar o crescimento dos gastos que não seja pelo aumento da já elevada dívida, ou pela inflação.

É evidente que o caminho correto não é esse, e sim adequar as despesas dos três níveis de governo às respectivas receitas. O lema "Mais Brasil, menos Brasília" poderia ser substituído por "Menos despesa, mais eficiência".

Marcos Mendes
Doutor em economia. Autor de "Por que o Brasil Cresce Pouco?"

Deixem o liberalismo fora disso - ELENA LANDAU

O Estado de S.Paulo - 03/08

Bolsonaro nunca foi nem nunca será um liberal. Seu governo também não


Por mais absurdo que pareça, a polarização que marcou as eleições do ano passado fez de Bolsonaro símbolo da candidatura liberal em oposição a Fernando Haddad, que reafirmava o modelo estatizante. Era a opção para encerrar o ciclo PT.

Muitos, em total autoengano, optaram por ignorar seu passado intervencionista e embarcaram nessa fantasia. Os 200 dias de governo não trouxeram nenhuma surpresa. Bolsonaro tem sido fiel aos seus princípios. A toda hora desdenha dos que sofreram na ditadura, como revelam os comentários sobre a jornalista Miriam Leitão e agora em relação ao pai do presidente da OAB. Seu apreço por torturadores e ditadores é notório. É um governo marcado pela intolerância. A tentativa de deslegitimar dados do Inpe sobre desmatamento reflete a dominância do achismo sobre a ciência, que, infelizmente, rege boa parte das ações públicas dele e de seus mais próximos colaboradores.

A insistência em nomear o filho, sem nenhuma capacitação para o cargo, embaixador nos EUA é mais uma mostra do viés autoritário. Ele nem enrubesceu ao dizer: “Quero beneficiar meu filho”. Ameaçou “privatizar” a Ancine, uma agência reguladora, porque ela não impede a produção de filmes, segundo ele, impróprios. É o início de uma política cultural de Estado, típica de ditaduras. A negação de evidências empíricas na formulação de políticas públicas, que interferem desde a segurança no trânsito até a preservação ambiental, revela um retrocesso assustador e um Estado que parece pré-iluminista. Isso nada tem que ver com uma postura conservadora, é só obscurantismo mesmo.

Não adianta apelar para a agenda econômica para descobrir um presidente liberal, como queriam alguns eleitores, que ainda hoje se agarram nessa esperança para manter seu apoio a este governo. Bolsonaro sempre votou contra reformas que buscavam diminuir o peso do Estado, do Plano Real à privatização. O confronto com o Congresso e a intervenção de última hora a favor dos policiais puseram a reforma da Previdência em risco. Foram necessárias a habilidade e a persistência de Rodrigo Maia para salvar o governo de si próprio.

A frustração na economia é grande. Na campanha era como se existissem dois candidatos. Bolsonaro nunca teve aptidão nem gosto pelas questões econômicas. Delegou o assunto a Paulo Guedes. O apelido Posto Ipiranga não vingou por acaso. Hoje as previsíveis dificuldades de levar adiante mudanças profundas sem o envolvimento direto do presidente da República são evidentes. Além da interferência atrapalhada na reforma da Previdência, Bolsonaro desidratou o programa de privatização, que se resume à venda de subsidiárias e ao avanço no campo das concessões. Nenhuma grande estatal está na agenda, além da Eletrobrás.

Há uma promessa de que após a aprovação em segundo turno da reforma na seguridade, um amplo programa econômico seja anunciado. Mas por enquanto só se anunciaram a volta da CPMF e os incentivos para a atividade econômica no curto prazo, com a liberação do FGTS, que não configuram um plano de reformas modernizantes. O fim do monopólio da Petrobrás, imposto pelo Cade, é uma excelente notícia, mas seus efeitos para a atividade econômica não serão percebidos no curto prazo.

Esse quadro não significa que o liberalismo fracassou, já que ele nem sequer foi tentado. No governo FHC foi implementada uma agenda econômica liberal para dar sustentabilidade ao Real. Não havia preocupação com a classificação ideológica, como hoje. A oposição apelidou o grupo de economistas de “neoliberais”, de forma depreciativa, para caracterizar as mudanças expressivas que ocorreram na economia: nova contabilidade fiscal, amplo programa de privatização, abertura comercial, tripé macroeconômico, inovação nas políticas assistenciais e financiamento da educação – medidas que permitiram a comemoração de 25 anos de estabilidade monetária em 1.º de julho.

O ciclo do PT no governo provocou uma guinada no modelo econômico, com grande viés estatizante. O sucesso do partido em experiências sociais, como o Bolsa Família, criou um discurso de que os partidos de esquerda são progressistas e os de direita, liberais na economia, separando a pauta de direitos da pauta econômica. O liberalismo não é nem um nem outro, mas os dois. A definição de Vargas Llosa é primorosa: “O liberalismo não é uma receita econômica, mas uma atitude fundada na tolerância, na vontade de coexistir com o outro e numa firme defesa da liberdade”.

Natural que diante do fracasso do modelo intervencionista, e da herança negativa deixada se enfatize a importância do funcionamento livre do mercado. Mas a saída para o Estado obeso e ineficiente não é a sua negação.

Num país onde metade da população não tem acesso ao saneamento e crianças saem da escola sem aprender o básico de Português e Matemática, a agenda da liberdade precisa ser mais abrangente do que o mantra “o mercado resolve tudo”. É fundamental incorporar iniciativas que criem igualdade de oportunidades e ajudem a mobilidade social.

Acredito que a indignação da maior parte da sociedade com os retrocessos da agenda Bolsonaro – a negação da ciência, o conservadorismo absurdo nos costumes, o obscurantismo das ideias de seus auxiliares mais próximos, o desrespeito ao meio ambiente e a tendência a querer governar por decretos inconstitucionais – esteja abrindo os olhos dos brasileiros para a importância das ideias liberais.

Neste século, o liberalismo é o contraponto perfeito à tendência mundial de crescimento do populismo nacionalista. Esta nova forma de autoritarismo se reflete na tentativa de imposição de ideias homogêneas, sem abertura para debate e controvérsias. Mas a intolerância é o avesso do liberalismo. Bolsonaro nunca foi nem nunca será um liberal. Seu governo também não. Melhor deixar o liberalismo fora disso.

Economista e advogada

Um freio em Bolsonaro - JOÃO DOMINGOS

O Estado de S. Paulo - 03/08

Supremo não precisaria ter julgado medida provisória das terras indígenas


A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, pela unanimidade dos 10 ministros presentes à sessão de quinta-feira, manteve a demarcação de terras indígenas com a Funai, foi uma forma de a Corte mostrar ao presidente Jair Bolsonaro que ele precisa cumprir o que determinam a Constituição e as leis.

A rigor, o Supremo nem precisaria ter julgado se Bolsonaro poderia ou não ter editado a medida provisória que transferiu da Funai para o Ministério da Agricultura a demarcação das terras indígenas. No dia 25 de junho, depois de ouvir líderes partidários, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), devolveu ao Palácio do Planalto a parte da MP que tratava da demarcação.

Argumentou que Bolsonaro não poderia assinar tal medida, pois dias antes o Congresso decidira, ao votar a medida provisória que fez a reforma administrativa e deu uma nova cara à Esplanada dos Ministérios, que demarcação de terras indígenas era com a Funai. E que a Funai deveria ficar no Ministério da Justiça, assim como o Coaf deveria sair da Justiça e voltar para o Ministério da Fazenda, agora transformado no Ministério da Economia.

Legalmente, portanto, a parte da medida provisória que se refere à demarcação das terras indígenas não existia mais. É prerrogativa do presidente do Senado devolver medida provisória que considera inconstitucional ou contrária ao que determina a Constituição. Do governo de José Sarney (1985/1990) para cá há vários casos de devolução. Em 2015, embora aliado de Dilma Rousseff, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), devolveu uma MP que tratava da desoneração da folha de pagamento das empresas.

Tanto a parte da MP sobre as terras indígenas já não existia mais que na quarta-feira, dia anterior ao julgamento, havia dúvidas no STF se o relator da ação, ministro Luís Roberto Barroso, que concedera uma liminar para suspender os efeitos da medida provisória, a levaria ao plenário. Como Barroso optou por manter o tema na pauta, o plenário então decidiu que Bolsonaro não poderia ter editado a medida. O ministro Celso de Mello, o mais antigo do STF, disse no voto que a iniciativa de Bolsonaro “traduz uma clara, inaceitável, inadmissível e perigosa transgressão” às normas constitucionais. Afirmou ainda que ela deforma o princípio da separação dos Poderes.

O STF também não estava obrigado a julgar logo no primeiro dia de retorno das atividades do Judiciário a ação contra a MP, apresentada por PT, PDT e Rede. Mas a forma como Bolsonaro agiu durante o recesso, tanto do Legislativo quanto do Judiciário, fazendo declarações que negam fatos históricos e documentos oficiais, levou o STF a decidir-se por botar um freio no presidente. Entre as declarações polêmicas dele está uma em que contesta decisão da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos a respeito do sumiço, na ditadura militar, do estudante Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz.

Há no STF uma preocupação com as ameaças praticamente diárias do que se convencionou chamar de “ameaça de disruptura” da sociedade democrática. Essa ameaça partiria, principalmente, de movimentos que usam as redes sociais para fazer ataques aos pilares do estado democrático de direito. Entre eles, os alvos principais são o Congresso e o STF e seus representantes. Declarações como as que Bolsonaro tem dado contribuiriam para manter vivos esses movimentos todas as vezes em que atingem as instituições. Assim, a decisão do STF não visou apenas a MP da demarcação das terras indígenas, mas o contexto de todo um movimento que se sustenta, em parte, no que o presidente faz ou declara.

O espelho não mente - DEMÉTRIO MAGNOLI

Folha de S. Paulo - 03/08

Bolsonaro, como antes dele o PT, abomina o pluralismo e o suprimiria, se pudesse



Jair Bolsonaro e o PT desnudaram-se, quase simultaneamente, em fiéis autorretratos. No Brasil, o presidente asqueroso festejou uma ditadura do passado, comemorando o assassinato de Estado de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB. Horas antes, em Caracas, na reunião do Foro de São Paulo, representantes do partido de Lula festejaram uma ditadura do presente que já tem, em Fernando Albán e no capitão Rafael Acosta, seus próprios Santa Cruz. Tão diferentes, tão iguais: quando se olham no espelho, cada um vê, refletida, a imagem do outro.

“O presidente da OAB declarou guerra à gestão Bolsonaro, protegendo criminosos contra o governo. Assim como os terroristas comunistas haviam declarado guerra aos governos militares. E não há guerra sem que haja efeitos colaterais.” Na carta raivosa de um bolsonarista, emergem os signos de uma lógica compartilhada: a política como guerra permanente, o impulso do extermínio físico do “inimigo”.

Troque as senhas ocas de um discurso ritual —“terroristas comunistas” por “agentes do imperialismo”, “governos militares” por “poder bolivariano”— e, mágica!, agora quem fala é Mônica Valente, a representante oficial petista no ato de solidariedade a Nicolás Maduro. Quando Bolsonaro ergue um brinde aos torturadores do DOI-Codi, como ignorar o brinde petista aos seviciadores do Sebin? Almas gêmeas: Bolsonaro inveja a tortura que, por um acidente da história, não infligiu; o PT inveja a tortura que, por um acaso da geografia, não aplicou.

A guerra pode ser interpretada como continuação da política (Clausewitz), mas o inverso só é verdadeiro nas ditaduras. Nas democracias, o pluralismo assenta-se na crença de que ninguém —nenhuma corrente política— possui o monopólio da verdade ou da virtude. Daí, as convicções democráticas de que a oposição cumpre papel positivo, apontando alternativas às ações do governo, e de que a crítica veiculada pela imprensa ajuda a limitar o exercício excessivo do poder pelas autoridades. Bolsonaro, como antes dele o PT, abomina o pluralismo —e o suprimiria, se pudesse.

Os populismos nascem no chão da democracia, pelo voto popular, mas desencadeiam insurreições autoritárias que almejam destruí-la. “Nós” contra “eles”: o “inimigo do povo”, na narrativa do PT, converte-se no “inimigo da pátria”, na versão de Bolsonaro. Quem não recordou, ao ouvir Bolsonaro sobre Glenn Greenwald, as palavras de Lula sobre Larry Rohter? De uma pulsão exterminista à outra, giramos em círculos sem sair do lugar.

Pepe Mujica descobriu que o regime de Maduro “é uma ditadura, nada além disso”. O raio esclarecedor tocou-o, finalmente, com a publicação do relatório da ex-presidente chilena Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para direitos humanos, que descreve as prisões arbitrárias, as torturas e os assassinatos extrajudiciais cometidos sistematicamente na Venezuela. Mas, para interditar a hipótese de repúdio diplomático uruguaio à tirania chavista, o líder da facção dos ex-tupamaros na aliança governista acrescentou que ela, a ditadura, “pertence a eles”, os venezuelanos.

À luz da democracia, o adendo tático de Mujica está errado. As ditaduras, inclusive as “estrangeiras” e as “do passado”, pertencem a todos nós. Isso é o que está escrito nas leis nacionais e nos tratados internacionais de direitos humanos. Os corpos mortos, mutilados, de Albán e do capitão Acosta, assim como o cadáver desaparecido de Fernando Santa Cruz e de tantos outros, são parte de nós, da aventura humana no mundo. Hoje, no Brasil, são algo mais: pertencem ao presente e demarcam uma encruzilhada civilizatória.

As celebrações paralelas do terror de Estado —a do PT, em Caracas; a de Bolsonaro, em Brasília— explicitam projetos políticos simétricos. Inimigos-irmãos, eles se merecem. Nós os merecemos?

Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Reconhecer vínculo trabalhista entre motorista e Uber é equívoco - BRUNO GOMES DA SILVA

Gazeta do Povo - PR - 03/08

A lei trabalhista prevê que, para que exista vínculo de emprego, devem ser preenchidos, de forma concomitante, alguns requisitos: habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação. Quando preenchidos simultaneamente estes requisitos, estará configurado o vínculo de emprego.

No entanto, algumas decisões de juízes e Tribunais Regionais do Trabalho estão decidindo de outra forma em relação ao reconhecimento de vínculo, causando certa curiosidade e, principalmente, insegurança jurídica. É o caso do Tribunal Regional do Trabalho da 3.ª Região, com sede em Minas Gerais, que neste último mês de julho reconheceu o vínculo de emprego entre um motorista e a Uber.

Sabemos que o aplicativo Uber se estabeleceu no Brasil em 2014, sendo uma plataforma americana prestadora de serviços eletrônicos na área do transporte privado urbano, e mais conhecido popularmente como “carona remunerada”. O Brasil é o segundo maior mercado da Uber, perdendo apenas para os Estados Unidos.


Reconhecer o vínculo de emprego entre motorista e a plataforma de transporte privado é decisão desconexa com a realidade tecnológica atual

Em um país em que tem cerca de 13 milhões de desempregados, o aplicativo veio para auxiliar pessoas a terem uma renda extra, ou mesmo como alternativa de trabalho para aqueles que estão desempregados. Afinal, quem deseja ser motorista do Uber tem a liberdade de utilizar o aplicativo quando necessário, sem qualquer tipo de cobrança de horário a ser cumprido ou subordinação. Portanto, o motorista pode ter uma atividade principal, não necessariamente de motorista, e durante seu período de folga pode utilizar a atividade de motorista de Uber para um complemento de renda.

Em nosso entendimento, a decisão do Tribunal do Trabalho de Minas Gerais é equivocada, não podendo ser reconhecido o vínculo de emprego entre motorista e a empresa Uber, pois não se acham presentes de forma concomitante os requisitos do artigo 2.º da CLT. Não há pessoalidade, pois não há a exigência de que seja o próprio usuário que esteja conduzindo o veículo. Qualquer pessoa pode se fazer representar pelo usuário, basta apenas que o celular esteja no carro com o aplicativo ligado para realizar as corridas. Não há onerosidade, pois não existe uma remuneração para os condutores. Eles ganham de acordo com sua quantidade de corridas realizadas. Quanto mais corridas realizadas, maior será seu ganho, mas não há exigência de um mínimo de corridas diárias. Não há subordinação, já que o aplicativo do Uber pode ser utilizado como bem entender o motorista. Ele pode trabalhar o dia que quiser e aceitar ou não a corrida ofertada pelo aplicativo. E, por fim, não há habitualidade, pois o motorista utiliza o aplicativo toda vez que entende necessário. Portanto, pode optar por trabalhar uma hora, dez horas, um dia, uma semana etc.

Portanto, como se pode perceber, não estão preenchidos os requisitos necessários para que seja reconhecido o vínculo de emprego. Ainda que supostamente se consiga preencher um ou outro requisito, isso não basta para o reconhecimento do vínculo, eis que todos devem ser preenchidos de maneira concomitante.

Reconhecer o vínculo de emprego entre motorista e a plataforma de transporte privado é decisão desconexa com a realidade tecnológica atual. Afinal, se for reconhecido o vínculo nestes casos, as empresas seriam praticamente obrigadas a se retirar do Brasil, o que ocasionaria um prejuízo grande à população, sem falar no aumento do número de desempregados sem qualquer renda. Afora isso, os encargos e obrigações trabalhistas no Brasil são muito exagerados para o empregador, em comparação com o que ocorre no restante do mundo. A persistir mais este entendimento equivocado, a Justiça apenas ajudará a agravar a imagem já existente, de que no Brasil não é fácil ser empresário, com certeza afugentando muitos investimentos estrangeiros no país.

Bruno Gomes da Silva é advogado trabalhista.

Desenvolvimento econômico e intervenção estatal (Parte II) - MARCUS PESTANA

O Tempo (MG) - 03/08

Papel social do governo e importância de sociedade e mercado

Fica claro que o papel do Estado é uma questão em aberto e que não há receitas prontas e exatas. A realidade sepultou os sonhos daqueles que advogavam um Estado máximo, onde o planejamento centralizado substituísse os mecanismos de mercado.

A questão passa a ser a calibragem ideal entre o livre jogo das forças de mercado e a intervenção regulatória e de política econômica do aparato governamental. Mas as crises cíclicas, os desequilíbrios e as desigualdades impõem algum grau de intervenção e arbitragem do Estado. Esta não é uma questão abstrata e depende das circunstâncias históricas concretas.

O Brasil faz parte do bloco dos países de industrialização tardia. Até a década de 1930, tínhamos a dinâmica de acumulação capitalista liderada pelo setor agroexportador herdado de nossas raízes coloniais e escravistas.

A industrialização por substituição de importações se deu com alta participação e indução estatal. Até a organização do mercado de trabalho partiu do Estado com a CLT. No período getulista, no Plano de Metas de JK e no Segundo PND de Geisel, mecanismos de incentivos e proteção cambiais, creditícios, fiscais foram usados a esmo de forma heterodoxa em nome do objetivo central da industrialização do país. Sem falar na intervenção direta do Estado-empresário em setores como petróleo, mineração, siderurgia, energia e telecomunicações. O resultado foi um país de razoável nível de complexidade industrial, um agronegócio moderno e competitivo e os maiores índices mundiais de crescimento entre o pós-guerra e 1980.

Mas a atual crise expõe a necessidade de mudanças radicais. A crise fiscal aguda impede qualquer sonho de reprodução do protagonismo do Estado. A economia contemporânea exige descentralização, inovação, flexibilidade. As respostas virão dos investimentos privados. E é preciso criar o ambiente de negócios adequado.

As características do desenvolvimento capitalista nos legaram disseminadas na sociedade e nas instituições uma cultura anticapitalista, uma visão paternalista da ação do Estado e um baixo espírito empreendedor e inovador.

É evidente que temos que ter políticas públicas para garantir a equidade social e ações muito bem calibradas do governo para regular e combater desequilíbrios e distorções de mercado. Mas temos que deslocar o protagonismo para a sociedade e para os empresários e a ação do Estado para a órbita exclusiva do social e historicamente necessário.

O anacronismo ideológico tenta impregnar o debate político com visões atrasadas e preconceituosas em relação à dinâmica capitalista. Pergunto: qual foi o mal causado pelas privatizações dos setores de mineração, siderurgia, telecomunicações e aeronáutico? E a quebra do monopólio estatal da PETROBRAS? Ao contrário, os resultados positivos são visíveis. Para que insistir em tabelamentos e controles excessivos de preços ou no paternalismo excessivo nas relações trabalhistas quebrado com a recente reforma trabalhista? Qual foi o resultado da última onda intervencionista da chamada Nova Matriz Econômica da era Dilma, com a desorganização do setor elétrico, do açúcar e álcool, “campeões nacionais” e voluntarismo fiscal? Um desastre!

Portanto, precisamos de menos retórica ideológica e mais pragmatismo e competência. Menos Estado e mais sociedade e mercado. Mais Brasil e menos Brasília.

Deltan deve ir para a cadeia? - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 03/08

É bom para a sociedade que o conteúdo das conversas hackeadas tenha se tornado público


Não há muita dúvida que é bom para a sociedade que o conteúdo das conversas hackeadas do pessoal da Lava Jato tenha se tornado público. Pudemos entender melhor como funcionam as entranhas da Justiça e ampliar nosso conhecimento sobre a natureza humana.

As consequências políticas da divulgação são inevitáveis. Sergio Moro e Deltan Dallagnol saem menores do episódio. Poderão ter dificuldades em dar seguimento ao que planejavam para suas carreiras. O caráter messiânico da Lava Jato também sai arranhado, o que não é mau desde que não se sacrifique toda a operação. Parece-me complicado, entretanto, usar as interceptações, que são um caso claro de prova ilícita, para condenar juridicamente quem quer que seja.

A questão das provas ilícitas é complicada, e a doutrina não é unânime, mas, de um modo geral, entende-se que elas não apenas não podem ser usadas no processo penal como ainda contaminam outras provas com que entrem em contato. Há, contudo, exceções. Elas podem, por exemplo, inocentar um réu.

Imaginemos um sujeito que foi condenado à morte, mas aparece uma gravação, obtida ilegalmente, em que outra pessoa admite ter cometido o homicídio. Seria obviamente uma loucura seguir com a execução, ainda que a prova seja ilegal e não sirva para condenar o real assassino.

Não é exatamente a mesma coisa, mas acho que, por derivação, dá para sustentar que as interceptações, ao revelar que Moro agiu com parcialidade em certos processos, podem levar à sua suspeição e possivelmente à anulação de algumas decisões. Usar essas provas para condenar Moro ou Dallagnol por algum crime que possam ter cometido, contudo, já me parece avançar demais.

O irônico aqui é que dupla fez um forte lobby para que o Congresso aprovasse uma legislação que flexibilizaria a vedação do uso de prova ilícitas. Eles perderam. Não acredito em deuses, mas admito que eles têm um profundo senso de ironia.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…"

sexta-feira, agosto 02, 2019

A revolução digital e as ameaças aos bancos - CELSO MING

FOLHA DE SP - 02/08

Os Planos de Demissão Voluntária (PDV) dos grandes bancos são exemplos de uma revolução em marcha sobre o setor


Na última terça-feira, o Itaú Unibanco anunciou Plano de Demissão Voluntária(PDV) para alcançar 6,9 mil funcionários dos 98,4 mil do seu quadro atual, que já vinha sendo reduzido. O Banco do Brasil, também em fase de reorganização, prevê a saída de 2 mil de seus 96,6 mil funcionários. A Caixa Econômica Federal, por sua vez, com 96 mil contratados, anunciou em maio um PDV para 3,5 mil, operação agora temporariamente suspensa para atender à movimentação dos saques de R$ 28 bilhões no Fundo de Garantia, que ela administra.

São três exemplos quentes do mesmo fenômeno que começou há anos e se intensifica agora. Os dirigentes do setor admitem que há uma revolução em marcha e não escondem sua preocupação com as ameaças a seu negócio.

Mais visível é a grande transformação pela qual os bancos estão passando, graças ao cada vez maior emprego de aplicativos. Esse mesmo fenômeno também vem dispensando agências bancárias. Pagamentos, transferências, depósitos, aplicações financeiras e tanta coisa mais podem agora ser feitos pela internet, por celulares e outros recursos digitais.

Acabaram-se as intermináveis filas diante dos caixas das agências que aconteciam no passado – em parte porque a inflação mergulhou e porque deixou de ser preciso proteger as reservas domésticas. Os gerentes passam a operar mais como consultores em investimentos e em operações de crédito do que no atendimento bancário convencional.

No passado, o funcionamento das agências bancárias exigia a posse de cartas patentes emitidas pelo Banco Central, que eram então arduamente disputadas pelas instituições financeiras. A localização das principais agências poderia ser condição definidora da compra de um banco por outro. Hoje, esse fator vem perdendo importância.

Os levantamentos do Banco Central mostram que, em dezembro de 2013, a rede bancária brasileira possuía 22,9 mil agências. Em abril deste ano, eram 20,7 mil. Ou seja, em pouco mais de seis anos, 2,2 mil agências bancárias, ou 8,8% do total, fecharam suas portas (veja gráfico).

Como os computadores e os próprios clientes (por meio dos aplicativos) assumiram grande número de tarefas antes executadas por funcionários dos bancos, a outrora poderosa categoria dos bancários também passa por relativamente rápido processo de esvaziamento. Agora, uma greve dos bancários funciona mais como oportunidade para que os bancos testem sua máquina com os funcionários de braços cruzados do que para garantir maiores salários e aumento de vantagens para a categoria.

Essa megaoperação de enxugamento vem contribuindo para forte redução de custos. Mas não livra os bancos de novas ameaças. Uma delas provém da grande agilidade das fintechs, essas startups, cada vez mais numerosas – e algumas já não mais tão nanicas – que passaram a atuar no mercado financeiro em que vêm mordendo fatias do mercado dos bancos.

No entanto, a mais importante ameaça provém das novas moedas digitais. E aí conta menos a ação da geração dos bitcoins e mais a das megamoedas em elaboração. O Facebook, por exemplo, em sociedade com outras 26 big techs (como Visa, Mastercard, Paypal, Spotify e Uber), anunciou para o ano que vem a criação da libra. Escorada em reservas de moedas conversíveis, ouro e títulos, a libra servirá como instrumento global de pagamentos e de transferências de recursos, pequenos e gigantescos e, em princípio, também no crédito, a uma fração das tarifas hoje cobradas pela rede bancária. Mais do que isso, não só atuará por fora, como deverá ser fator que dispensará o uso dos bancos por parcelas crescentes da população.

Os bancos centrais e autoridades monetárias estão preocupados com o potencial disruptivo dessas novidades e gostariam de intervir, mas ainda não sabem de que forma. Como já entenderam que não podem proibi-las, porque seu bloqueio abriria espaço para iniciativas do mesmo tipo na China, na Rússia e em outros países asiáticos, parecem agora mais propensos a criar seus próprios sistemas monetários digitais.

Ou seja, o admirável mundo novo preconizado pelo escritor inglês Aldous Huxley não se limita à escalada do autoritarismo com métodos modernos, mas se transpõe agora à revolução digital, cujas consequências estão longe de serem vislumbradas.