ESTADÃO - 04/08
Amplas parcelas da população sentem-se representadas pelo jeito ‘tiozão’ de Bolsonaro
Informal, irreverente e rude. Pelas controvérsias criadas, o presidente demonstra ter a mesma compostura de alguém no happy hour.
Há poucas semanas, o presidente Jair Bolsonaro comunicou que passaria por uma intervenção dentária e não poderia falar por três dias. Estava dada a piada pronta. Mesmo entre apoiadores, foi comemorado o intervalo sem declarações polêmicas. Seu disparo quase diário já é uma marca deste governo.
Mais que polêmicas, muitas das declarações têm um tom de grande informalidade e, por vezes, grosseria. Tudo parece fora do que se espera de alguém investido da posição de presidente da República.
Houve recentemente a referência aos governadores do Nordeste como “paraíbas”; assim como a fala sobre oferecer filé aos filhos sempre que puder, ao indicar um deles ao cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Ou dizer saber do fim que levou o pai desaparecido do presidente da OAB, Fernando Santa Cruz, preso durante a ditadura militar. Os exemplos se acumulam.
Como entender essa forma de narrativa?
Que efeito produz?
A intencionalidade dessa forma de comunicação só poderia ser conhecida com uma conversa com seu autor, o que não nos é acessível. Mas sabemos que o efeito polêmico é bem recebido. Ante a reação contra a indicação do filho para a embaixada, o presidente disse que, “se estão reclamando, deve ser uma coisa boa”.
As hipóteses extremas seriam: em primeiro lugar, a expressão de um homem simplório e inconsequente; e em segundo, um plano de comunicação muito bem orientado. Talvez tais hipóteses não sejam excludentes ou inteiramente certas, mas chamo a atenção para três dimensões psicológicas envolvidas.
Identificação – Enquanto boa parte da mídia e das pessoas repudia esse tipo de declaração, é evidente que há amplas parcelas da população que se sentem representadas pelo conteúdo e pela forma a que o presidente recorre. Esta é a dimensão populista de sua figura: ele fala “perto” de muitas pessoas que se viam sem voz. Pense-se no debate sobre o “politicamente correto”, no qual certos estratos sociais se afirmavam no estabelecimento de uma nova norma discursiva. O presidente restitui a voz aos recém-oprimidos em sua expressão de valores.
Muitos se perguntaram por que, nas últimas eleições, existindo outras candidaturas consideradas de direita, como Henrique Meirelles e Geraldo Alckmin, com uma postura sóbria, as intenções de voto se dirigiram a Bolsonaro. Talvez aqui tenhamos uma reposta: ele é próximo ao homem comum, que se pode ver representado nele, algo impossível na formalidade e falta de carisma de Meirelles e Alckmin. Nisso, sem dúvida, Bolsonaro replica e se identifica com seu inimigo número um: o ex-presidente Lula. Este também foi famoso por declarações polêmicas e um jeito popular de se portar e comunicar.
Distração – Outro efeito claro das declarações polêmicas é o de distrair a atenção de temas nacionais de maior peso, ou mesmo de problemas envolvendo o governo e familiares do presidente. Parece estranho um presidente se dedicar pessoalmente à legislação sobre o uso de cadeirinhas para crianças nos carros ou que tipo de filme merece financiamento público. Uma vez mais, essa ocupação com o “varejo” tem um tom populista e de distração. A referência histórica, agora, é Jânio Quadros, genial em se tornar notícia, por exemplo, ao proibir o uso de biquínis.
As distrações ocupam muito espaço na mídia e nas redes sociais e produzem muito ruído.
Ressentimento – A forma por vezes grosseira, que parece desprezar tradição política, institutos de pesquisa e conhecimento acadêmico, também parece ser a expressão de um sentimento popular: a exaustão geral com a forma como a política foi exercida nas últimas décadas. Nossa frustração social e econômica parece ter encontrado um vilão nos donos anteriores do poder: os políticos profissionais, as autoridades intelectuais institucionais. É como se, num grande grito de ressentimento, o homem comum gritasse: “Chega! Vamos voltar a um modo mais simples de pensar e funcionar”. A decepção real com a Nova República resulta numa raiva muito grande com tudo o que ela representou. Há um repúdio ao intelectualismo do PSDB, ao discurso ideológico do PT e à política tradicional como um todo. Teríamos, então, a narrativa de um presidente que se vê como um outsider que chegou ao poder. Há algo de punk naquele discurso, que cospe na cara das convenções.
Brilha, então, o discurso de um homem comum, que fala como se estivesse sempre num ambiente informal – o “tiozão do churrasco”, como tem sido dito –, a disparar suas opiniões e vociferar contra as instituições. Ele soa como alguém que vai fazer o que precisa ser feito, passando por cima de entraves burocráticos ou legais. Sua comunicação é direta, por mídias sociais, ao largo da mediação da imprensa. Esse é o campo em que o populismo desliza para o autoritarismo.
Por fim, há também a facilidade com que desdiz o que disse, num mesmo dia. As falas parecem balões de ensaio que, em função da recepção, são sustentadas ou negadas. Mas esses balões de ensaio estendem o campo do “novo normal” e se corre o risco de deixar de perceber o reposicionamento moral e ético que está sendo operado.
Tudo leva a crer que esse discurso fortalece o núcleo duro daqueles que com ele se identificam, mas, enquanto isso, parece corroer pelas bordas quem não se sente representado por aqueles valores e tem uma atitude mais moderada. Identificar-se com valores conservadores é uma coisa, com um discurso de ódio é outra.
Os estudos de marketing político costumam dizer que o principal elemento para a popularidade de um político com mandato é a situação econômica. É um bom aprendizado acompanhar em que medida um discurso que mobiliza paixões tão primitivas interfere na avaliação do presidente.
PSICANALISTA, É PROFESSOR DA ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING (ESPM-SP)
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