O longo processo de cozimento das instituições republicanas
Sabe o churrasco de Bolsonaro? Teve. Foi na quinta, 7 de maio, dentro do STF. Assado mais explícito de um longo processo de cozimento das instituições republicanas, cujas maminhas — sobre essa chama que ora sobe, atiçada pela oportunidade que a peste dá aos extremos — se foram amaciando, amanteigando, cedendo o brio dos nervos, até que nacos seus se pudessem cortar não apenas sem resistência; mas em oferta.
Desde o começo do governo Bolsonaro, um criador para abate em grande escala, houve estímulos — de início meramente verbais, dissimulados na imensidão do zap profundo — a manifestações contra STF e Congresso. Depois, com progressiva adesão física de agentes do Planalto, os atos evidenciariam o que sempre foram: propriedade do bolsonarismo — de modo que não tardaria a que se visse, por exemplo, general Heleno sobre carro de som em protesto de ataque às instituições.
O governo — o projeto de poder autocrático disfarçado em governo — passava a fazer pressão, contra a democracia liberal, também por meio do corpo forjado a partir do investimento, aposta pessoal de Bolsonaro, na formação de um movimento de rua que reage, com violência, ao soar do apito-mestre. Não demoraria — a peste já entre nós — até que o soprador ele próprio se juntasse à matilha adestrada ao cerco de Supremo e Parlamento; numa das vezes para tocar o berrante, criminalizando (novamente) a ideia de negociação (enquanto negociava com notórios vendedores de si mesmos), defronte ao QG do Exército.
E então o churrasco. A marcha de Bolsonaro, não para o Supremo — mas sobre o Supremo. O QG da Constituição, escancarando-se, dócil, à emboscada. O anfitrião foi Toffoli, presidente daquela corte. Prosperou, a propósito, a versão — mui influente — de que o ministro teria sido pego de surpresa por um rompante do presidente da República, o mais espontâneo ser entre os de espontaneidade calculada.
Toffoli, ele mesmo, capturado, sem conversa prévia, no contrapé — o ex-zeloso: aquele outrora capaz de instaurar um inquérito sigiloso, sem objeto investigado definido, resultando mesmo em censura a uma revista, apenas para proteger a sua honra e a dos pares. Certo. Toffoli surpreendido. Seria, então, o anfitrião acidental. Mas isso — o de repente — não a ponto de impedir que rapidamente se arrumasse a varanda gourmet do STF. Responsabilidade institucional acima de tudo.
Toffoli desconhecia a agenda — isso prosperaria também. E não teve a curiosidade de perguntar. Seria desrespeitoso; poderia abalar a harmonia (que vige, né?). Não se nega a cortesia de um chefe de Poder que vem no improviso — e seria feio lhe questionar sobre as carnes que trazia. Por que quereria se inteirar do cardápio, a ser servido no tribunal cuja pauta controla, se quem lhe impunha a fraldinha súbita está em conflito com outros habitantes daquela casa — investigado num inquérito recente ali instalado? Por quê? Se é o governante que teve uma nomeação ali impedida, e esvaziada ali a caneta para decretar contra as medidas restritivas de governadores e prefeitos, por que desejar saber do que viria tratar?
Aceitemos, pois, que Toffoli ignorasse os cupins oferecidos e tampouco soubesse quais e quantos seriam os penetras. Terá também sido surpreendido pela transmissão, via rede social, do açougue em que se improvisou o STF? Não quis dizer não a Bolsonaro? É isso? Pudemos então saber, ao vivo, que o ministro reage bem— seguramente porque em defesa do equilíbrio republicano —a surpresas, capaz de dissimular contrariedades (fez vazar que ficara contrariado) e mesmo de atuar como se fizesse parte orgânica daquele fogo de chão no frigorífero.
Mais tarde naquele dia, seria reportado — pela primeira vez — volume de mortes superior a 700 em 24 horas, isto depois de, na véspera, termos violado a barbárie dos 600 mortos. Toffoli, porém, esteve à vontade — a institucionalidade pedia — para aderir ao clima de consternação ante a perspectiva de falecerem CNPJs, franqueando o Supremo ao matadouro de CPFs em que consiste o lobby populista de Bolsonaro. Com a presteza do ignorante que não é, o presidente do STF — não sei se cabo ou soldado — também forneceria o carvão, o próprio tribunal.
Paulo Guedes, manuseando a sua técnica de Chicago, foi o churrasqueiro. Sem saber ainda, churrasqueiro também de si mesmo — emprestando o espeto liberal, já enferrujado, à picanha autoritária (um corte do boi tão nobre que jamais encontrado, aquele em cuja superfície, instável como só ao piso ausente, o açougueiro pensa ser possível promover reformas liberais do Estado) e à linguiça sociopata segundo a qual as medidas restritivas não funcionaram, conforme indicaria o decolar da curva de mortos, senão para assassinar a economia e matar o pobre.
Guedes é o churrasqueiro. Espero que saiba que o chefe gosta de carne bem passada, há um mês dizendo que o pior já passou. A costela somos nós.
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