O que levaria ao suicídio do ser maior, o universo?
A negatividade em filosofia tem longa credencial. Negatividade é um nome chique para crítica, pessimismo, acosmismo (negação de que exista alguma ordem de sentido nas coisas ou que exista, sim, uma perversa), enfim, para concepções que retiram de nós a esperança.
A tragédia grega ática e o niilismo moderno são exemplos sofisticados. Uma de suas grandes forças é desmascararem negativos gourmets que andam por aí posando de pessimistas.
Entre essas formas de negatividade se encontram as distopias, como “1984”, de George Orwell, “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand.
Os gnósticos cristãos, no início da era cristã, o zoroastrismo persa, mais antigo, o maniqueísmo iraniano —uma forma de cristianismo influenciada pelo pessimismo cosmológico persa—, também do início da era cristã, são formas de espiritualidade negativa. Nos três casos, quem criou o mundo foi uma divindade
cruel. Agora, temos um gnóstico entre nós, o filósofo Carlos Malferrari, o discreto.
Sei que muitos seguidores das novas espiritualidades dizem que são gnósticos, mas, coitados, não sabem o que dizem.
Para ser um herdeiro verdadeiro do gnosticismo antigo (além de dever possuir um enorme repertório no gnosticismo antigo), você deve sustentar uma melancolia ontológica profunda que se manifesta numa desesperança assustadora.
A moçada das novas espiritualidades, em geral (com raras exceções), é gente infantil que crê na “força” em Thor e vê a Mulher Maravilha como a prova de que o mundo originalmente era matriarcal. Neste último caso específico, uma espécie de idiota de gênero sem doutorado.
Um exemplo de artista importante que já demonstrou possuir uma percepção gnóstica de mundo é o dinamarquês Lars von Trier, que sempre apanha por isso.
“O Delírio Filosófico do Historiador Salem Zoar”, escrito pelo filósofo Carlos Malferarri, o discreto, ainda sem editora, é um exemplo primoroso desse estilo distópico, que guarda uma semelhança significativa com as cosmogonias gnósticas pessimistas em que o mundo é criação de um demiurgo idiota, orgulhoso e incompetente.
Só que nosso filósofo gnóstico paulista narra uma escatologia (o fim do universo), e não uma cosmogonia (origem do universo), de têmpera gnóstica, e seu agente é a estupidez humana. Nós somos os demiurgos. E o universo “desiste” de si mesmo por conta disso.
Importante não dar spoiler sobre o curso da narrativa de nosso “herói”, o historiador
Salem Zoar, alter ego de Carlos Malferrari, o discreto. Salem, por si só, já é um nome que nos remete a Jerusalém, às bruxas de Salem ou mesmo a Matusalém —personagem bíblico famoso por viver mais do que o normal entre os homens.
Zoar, claramente, nos leva à cabala e a narrativas cosmogônicas típicas dessa espiritualidade judaica antiga. Mas é o delírio, enquanto tal, que nos importa e nos atormenta.
O livro de Malferrari é uma crítica à modernidade e sua “causa pelo progresso”, que começa tornando o elétron livre um escravo na corrente elétrica.
Sua intuição inicial é cosmológica e só em seguida revela seu vínculo humano. O delírio se abre com a desistência do universo por si mesmo: ele para. Suas partículas “se suicidam”. O movimento, causa profunda do universo ser o que ele é, cessa e daí as consequências que se seguem. O que levaria ao suicídio do ser maior, o universo? Evidentemente eu não vou lhe dizer.
Mas, entre tantas coisas, uma eu posso contar, para dar a você um gostinho da força dessa narrativa discreta acerca de nossa vaidade moderna. Num dado momento, antes do momento final do Ser, a humanidade atinge seu objetivo “científico” maior: a imortalidade. Entre tantas ferramentas possíveis para tal, duas chamam a atenção do leitor treinado no olhar negativo para com o momento contemporâneo.
A primeira é a “descoberta científica” de que células cancerosas podem ser uma grande ajuda para nos tornarmos imortais —basta lembrarmos da “tenacidade em existir” que caracteriza a célula como essa. Uma vez descoberto tal passo, as pessoas passam a induzir câncer em si mesmas, apesar do fedor e da deformação que elas causam.
A segunda é a maior de todas: a descoberta de que comer fezes, principalmente as próprias fezes, nos fazem imortais. A alimentação “saudável” muda e a ciência da nutrição passa a defender saladas
feitas de cocô. Estamos quase lá, não? Merda é natural e orgânica, afinal de contas.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário