ESTADÃO - 05/08
Não há incontinência verbal, mas a lógica de um projeto de poder, muito bem pensada
As manifestações intempestivas do presidente da República, suscitando confrontos permanentes, aparecem como formas de descontrole, quando são, na verdade, lógicas segundo sua arte de governar. São coerentes não apenas com o seu estilo pessoal, mas também, e sobretudo, com sua forma de fazer política.
Somente agora completa o novo governo sete meses, porém tem-se a impressão de que alguns anos já transcorreram. Discute-se a sucessão presidencial como se as eleições já estivessem ali adiante, expondo um quadro de envelhecimento precoce do governo. Nestes poucos meses ele ainda não disse ao que veio, mas novas eleições já entraram em pauta.
A duras penas completou o novo governo a aprovação da primeira rodada de votações da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados. O processo, provavelmente, não se concluirá no Senado antes de outubro, no que se configura o início de um duro processo de retomada do crescimento. No entanto, o debate público é regido por questões manifestamente menores, como liberação de cadeirinhas para crianças nos automóveis, porte de fuzis, nomeação de um filho para embaixador, acusações de que o pai do presidente da OAB teria sido “justiçado” por seus “companheiros” durante o regime militar, e assim por diante. Há uma evidente confusão entre o principal e o acessório. A comunicação social do presidente é manifestamente falha. Só agrada aos fiéis e aos já convertidos.
Note-se que o governo, em vez de se beneficiar dos seus feitos – como o começo da aprovação da reforma da Previdência, a lei sobre o direito à legítima defesa (depurada de seus excessos), a concessão de aeroportos, o debate sobre a necessidade das privatizações, o início de desburocratização administrativa via eliminação de decretos, portarias e conselhos –, se perde em pautas claramente secundárias, ofuscando o que faz pelo País. Há uma inversão: o principal sai de foco e entra em seu lugar o subsidiário.
Qual é a lógica? Certamente não é a arte de governar, pois esta exigiria uma atenção às políticas públicas voltadas para tirar o País do marasmo de uma economia que patina e de um desemprego que aterroriza milhões de brasileiros. A insegurança pessoal ronda boa parte da população. Em seu lugar entra um conjunto de questões menores que diz respeito à concepção política dos bolsonaristas, voltada para o embate permanente, sempre à caça do inimigo real ou imaginário, não importa. O que conta é a “existência” do inimigo, real ou não.
Quando o presidente confronta opositores, logo tomados como inimigos, logo o faz sob a forma do embate, como se ele próprio estivesse em questão, como se estivesse sendo atacado. Qualquer ocasião é aproveitada segundo sua intuição dos dividendos que poderá extrair do confronto. Precisa do embate para fortalecer a própria posição, sentindo-se ameaçado. Tal processo funcionou muito bem durante a campanha eleitoral, particularmente propícia para a “destruição do inimigo”, no caso, o PT. Deixa, porém, de funcionar quando se aplica à arte democrática de governar, baseada na negociação e na composição com os adversários.
Tomemos o caso do confronto com o presidente da OAB. Em aparente descontrole, o presidente fez acusações, sem nenhuma prova, ao pai do dr. Felipe Santa Cruz, procurando criar uma instabilidade no interlocutor. Tratou-se de um ato gratuito, fora de contexto, sem nenhuma compaixão. A moral foi para o espaço. A liturgia do cargo foi abandonada. Suscitou um problema que não deveria sequer ter sido levantado. Por que o fez?
Procurou trazer para o debate político a questão do “justiçamento” dos que participaram da luta armada para a instauração do socialismo/comunismo no Brasil. Ressalte-se: não lutaram pela democracia. Eram “companheiros” que não mais concordavam com o uso da violência, que discordavam ou, simplesmente, pretendiam voltar a uma vida normal. Eram tidos por “suspeitos” ou ”traidores”. Foram “julgados” por “tribunais populares” e sumariamente assassinados. Tais casos, porém, não foram investigados pela Comissão da “Verdade”, por contrariarem a narrativa de que a “esquerda” seria “vítima” e lutava pela “democracia”. Acontece que o caso específico do pai do presidente da OAB não se enquadra nesse tipo de fato, tendo sido atestada sua morte, seu “desaparecimento”, nas mãos de órgãos do Estado.
Ora, o presidente, ao suscitar um problema histórico e mal aplicá-lo ao caso em questão, trouxe a entidade dos advogados para o embate político, realçando seu perfil de esquerda e colocando-a como “inimiga”, na esteira de outros ataques ao PT. Ou seja, o presidente precisa do PT e da esquerda em geral para se justificar, para manter em movimento o seu embate político, pois é essa narrativa que o seu grupo pensa ser a sua forma de sustentação. Se 2022 é o horizonte, é necessário que sua narrativa seja preparada desde já. O “inimigo” deve estar agora presente. Se o PT não existisse, seria necessário criá-lo.
Na verdade, o inimigo real dos bolsonaristas não é o PT, mas o centro do espectro partidário, que se pode apresentar nas próximas eleições em figuras como o governador João Doria ou o apresentador Luciano Huck. Eles são os alvos ocultos. Pense-se, por hipótese, que os bolsonaristas representam em torno de 30% dos eleitores e o PT e a esquerda, outros 30%. O embate entre os dois grupos favorece ambos, excluindo terceiros. O presidente Bolsonaro está voltado para o fortalecimento de seu eleitorado, de seus fiéis, apostando que o adversário num eventual segundo turno seria o PT. Suas chances eleitorais seriam grandes. Se, contudo, o PT não tiver condições de chegar ao segundo turno, entrando em seu lugar Doria ou Huck, o presidente estaria seriamente ameaçado.
Não há incontinência verbal, mas a lógica de um projeto de poder, muito bem pensada.
DENIS LERRER ROSENFIELD É PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFGRS.
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