domingo, julho 14, 2019

Riscos de nepotismo e obscurantismo no Itamaraty - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 14/07

Intenção do presidente de nomear um dos filhos para embaixada nos EUA contrasta com histórico da instituição


Anuncia-se a abertura ao público da correspondência oficial, reservada, mantida pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro com o presidente João Figueiredo durante a Guerra das Malvinas, em 1982. É bem-vinda a iniciativa da Fundação Getulio Vargas.

Há 37 anos, no dia 2 de abril, a ditadura militar argentina surpreendeu o mundo com a invasão das Ilhas Malvinas. O confronto com o Reino Unido se tornava irreversível, e o Brasil ficou no fio da navalha.

Com a perspectiva de guerra no Atlântico Sul, não podia correr risco de isolamento continental, dando a impressão de apoio ao Reino Unido — até porque não apoiava. Também recusava o alinhamento à Argentina. E a tradicional rivalidade no Cone Sul inspirava preocupação com eventual fortalecimento do regime militar argentino.

Empregados do Itamaraty, o ministro Guerreiro e o embaixador brasileiro em Washington, Azeredo da Silveira, manejaram com destreza o Direito Internacional em defesa dos interesses nacionais. Ao responder a um pedido de ajuda no rascunho do “pensamento do senhor presidente”, Guerreiro traçou uma estratégia. E sugeriu evitar “declarações de autoridades militares”.

Deu-se o improvável. Diante da realidade de uma guerra, o último dos generais-presidentes do ciclo de 1964 subordinou a ação no “teatro” do Atlântico Sul à diplomacia profissional — civis encarregados da política externa do governo militar.

Os resultados compõem o legado da mais significativa obra do período: a consolidação de relações com a Argentina. Foi uma efetiva virada no curso da História, que abriu caminho ao Mercosul e ao acordo de mútua fiscalização nuclear, algo que permanece inédito no planeta.

Essa base de profissionalismo na diplomacia tem garantido independência e realismo na defesa dos interesses do Brasil, a despeito de ocasionais delírios de governantes.

O contraste é evidente com a dinâmica atual do Itamaraty, subordinado a diretrizes obscurantistas emuladas pelo chanceler Ernesto Araújo. Em evento recente, ele resumiu a orientação da política externa: “Recuperar o coração da sociedade liberal e recompor a alma conservadora. É a preservação de um conceito profundo de dignidade humana, [iniciativa] de alguém que se relaciona com Deus.”

Para o atual chanceler, o fenômeno da expansão capitalista conhecido como globalização seria produto da infiltração do comunismo “no coração dos liberais”. Araújo disse isso e, vinte dias depois, subscreveu a maior iniciativa global de livre comércio dos últimos anos, o Acordo Mercosul-UE, conduzido pela Argentina.

A desconstrução de uma histórica arquitetura funcional do Estado ganhou novo capítulo na semana passada: o desejo manifesto do presidente de presentear um dos filhos com o comando da Embaixada em Washington. O nome disso é nepotismo.

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