O Mercosul saiu da letargia. Para se fazer justiça, foi um movimento iniciado pelo governo do ex-presidente Michel Temer, que já havia dado um caráter de pragmatismo ao bloco e recuperado sua vocação original: a de integrar comercial e economicamente os quatro países do Cone Sul - Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.
Não se duvida aqui do desejo sincero de lideranças como Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Néstor e Cristina Kirchner de unir politicamente a região. O problema é precisamente esse: convertido em tribuna, o Mercosul descumpria seus verdadeiros objetivos. Enquanto as cúpulas presidenciais serviam para proclamar, com evidente exagero, que nunca se havia feito tanto pelo fortalecimento do bloco, nós comerciais se multiplicavam e exigiam intervenções em instâncias políticas cada vez mais altas para serem desatados. Criaram-se fóruns de pouca serventia, como o Parlasul e o Instituto Social, mas o básico da integração não funcionava e continua sem funcionar. Basta perguntar a qualquer turista brasileiro se consegue recarregar o telefone celular em um hotel em Buenos Aires, sem uso de adaptador, ou questionar qualquer aposentado argentino se acha fácil retirar sua pensão morando no Rio.
Deixando de lado as caricaturas, o Mercosul foi perdendo importância. A livre circulação de bens jamais se consolidou. Do leite em pó uruguaio às maçãs argentinas, sem falar no comércio administrado de automóveis, o protecionismo interno sempre prevaleceu mesmo entre parceiros que se supunham preferenciais. A Tarifa Externa Comum está longe de honrar o nome e cada país vai abrindo exceções nas alíquotas de importação conforme necessidades e conveniências. Fora da região, só três acordos de livre comércio foram assinados. Todos com países inexpressivos: Israel, Egito e Palestina.
O tiro de misericórdia no pragmatismo do bloco foi dado com uma chicana para permitir a adesão da Venezuela, já em escalada autoritária. Travada pelo Senado paraguaio, a entrada do país caribenho ocorreu após uma polêmica suspensão que os sócios do Mercosul aplicaram ao Paraguai, como resposta ao impeachment relâmpago do ex-presidente Fernando Lugo. Se esse arranjo animava as discussões políticas, também gerava semiparalisia funcional.
Entre 2016 e 2018, houve movimentos para recuperar o tempo perdido. Em deterioração rápida no campo dos direitos humanos, a Venezuela foi suspensa. Dois importantes acordos foram alcançados: um de compras governamentais (dando tratamento nacional para empresas de cada país-membro em licitações públicas abertas por outro sócio), outro de cooperação e facilitação de investimentos (oferecendo maior segurança jurídica às empresas com negócios na região).
O maior avanço, no entanto, foi o anúncio do tratado de livre comércio com a União Europeia, negociado exaustivamente ao longo das últimas décadas. Por mais que detalhes, como tarifas e cotas, sejam desconhecidos, as informações já trazidas à tona sugerem um acordo relativamente equilibrado e vantajoso para os interesses sul-americanos. Dá-se, enfim, um sopro de ânimo no bloco como plataforma para a abertura de mercados, lembrando que quatro países negociando em conjunto têm poder de barganha mais alto do que agindo cada um isoladamente.
Do lado brasileiro, uma vez mais para se fazer justiça, é preciso dar o devido crédito a governos anteriores pelo tratado. Dilma foi responsável pela retomada das negociações com a UE e conseguiu costurar, em seu breve segundo mandato, uma oferta de abertura do Mercosul aos europeus - apresentada, curiosamente, na véspera do afastamento pelo Senado. Temer, beneficiando-se do maior engajamento de Mauricio Macri na Argentina, em relação ao protecionismo kirchnerista, acelerou as discussões. Bolsonaro, ao entrar no Palácio do Planalto, já encontrou grande parte do esforço empreendido. Deve-se reconhecer, porém, que nos acordos comerciais a "última milha" das negociações constituem sempre o ponto mais desafiador. Isso dá méritos incontestáveis à sua equipe, embora - ressalte-se - o diabo more nos detalhes e seja necessário ver atentamente se há armadilhas no texto final, como a aplicação do "princípio da precaução" para produtos agrícolas.
Será mais do que legítimo nesta semana, durante a cúpula do Mercosul em Santa Fé, se Macri e Bolsonaro se dedicarem a comemorar o acordo com a UE. Mas a estagnação do bloco foi tão longeva que se recomenda economizar nas congratulações e aproveitar a presidência rotativa do Brasil, nos próximos seis meses, para atacar uma agenda prioritária: eliminar barreiras internas, acelerar tratados de livre comércio, reestruturar a TEC e buscar convergência no que afeta os cidadãos, das aposentadorias a celulares.
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