FOLHA DE SP - 15/07
A própria ideia de que a prosperidade seja parâmetro de saúde mental é algo ilusório
Alguns leitores me perguntaram o que eu quis dizer quando me referi dias atrás a “opção Jon Snow”, um dos personagens centrais da série “Game of Thrones”. Descrevi essa opção como sendo uma utopia estoica.
Jon Snow, verdadeiro herdeiro legítimo ao trono de ferro na série, recusa desde cedo qualquer cargo de poder que lhe é oferecido, evoluindo ao longo da trama para uma atitude muito próxima ao ideal estoico. O que é esse ideal estoico?
Os nomes mais famosos dessa escola filosófica são romanos, e gente poderosa, como o imperador Marco Aurélio e os senadores Sêneca e Cícero, todos vivendo no auge do império romano. Mas, para além de nomes famosos, a ética estoica permanece encantadora por seu chamado à renúncia dos engodos do mundo.
Muitas pessoas que detestaram o final da série o fizeram por entender que o destino de seu maior herói, Jon Snow, foi demasiadamente melancólico.
Se o temperamento estoico sempre foi marcado por uma certa melancolia, como pode essa ética antiga permanecer encantadora para aqueles que se sentem atraídos pela sua visão de mundo? A fortuna crítica se refere a ela como “constante estoica” no sentido que, apesar das mudanças históricas entre o mundo antigo e o nosso, o estoicismo continua falando conosco. Qual seria esse idioma?
O estoicismo parte do pressuposto de que há um grande engodo na vida. Esse engodo é a busca do sucesso. Talvez, uma das melhores sínteses do estoicismo seja as seguintes questões: vale a pena buscar o sucesso na vida? Isso deve ser nosso critério de felicidade? E aí, tocamos numa nota essencialmente constante do estoicismo.
Arriscaria dizer que, se o desafio estoico (a recusa ao engodo do sucesso) era um desafio para poucos na Antiguidade (reis, senadores, aristocratas, Jon Snow), hoje ele foi “democratizado”. A própria ideia de que a prosperidade seja parâmetro de saúde mental é algo que chama a atenção para qualquer temperamento estoico. Dito de outra forma: o estoicismo nunca foi tão necessário em dias como os nossos, rasgados pela breguice do sucesso como ontologia.
Marco Túlio Cícero, senador romano envolvido no assassinato de Júlio Cesar, um dos filósofos mais importantes do período romano, em seu “Paradoxo dos Estoicos”, publicado no volume “Textos Filosóficos” da Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa, analisa algumas máximas estoicas.
Sabemos que Cícero guardava uma relação no mínimo ambivalente, para não dizer eclética, com o estoicismo, diriam alguns, justamente, pela sua enorme vaidade moral e ambição política. Traços que conflitam frontalmente com a ética estoica.
Nessa obra, entre outras máximas, duas são muito características do temperamento estoico. Vamos a elas: 1) “Apenas o sábio é livre, todo o insensato é escravo”; 2) “Apenas o homem sábio é rico”.
De partida, sabemos que o estoicismo sempre relacionou felicidade a sabedoria. A primeira nos fala da liberdade do sábio. Mas liberdade em relação a quê? A pergunta é vasta, mas, seguramente, liberdade em relação às ambições mundanas, como dinheiro, poder e sexo.
Não se trata de uma condição celibatária, tampouco de um voto de pobreza, mas do reconhecimento de que há um combate contínuo com o risco da insensatez, entendida como a escravidão a dinheiro, poder e sexo —numa palavra, as paixões. Essa é busca pela autonomia estoica. Sempre se soube que essas três coisas estão relacionadas.
Os americanos sempre dizem “siga o dinheiro”, os franceses “busque onde está a mulher na história”, ambas as máximas no sentido de que, onde há dinheiro e sexo (claro, estou falando do ponto de vista masculino heterossexual, que sempre teve a maior parte do poder no mundo; é sempre bom avisar aos inteligentinhos e seus irmãos caçulas, os idiotas de gênero), há briga pelo poder. As três realidades estão profundamente imbricadas.
Se juntarmos as duas máximas estoicas citadas por Cícero, chegamos à conclusão de que a riqueza verdadeira não é muito dinheiro e muito poder para ter muitas mulheres, mas a capacidade de resistir à atração incontrolável desses três fatores sobre nossa natureza (claro, isso vale pra todos os sexos da humanidade).
A utopia estoica é atingir a ataraxia, uma alma em repouso, que não se ilude com as promessas efêmeras do mundo. Numa cultura da prosperidade como a nossa, o estoicismo continuará encantador, justamente pelo seu desprezo a tudo aquilo que os idiotas do sucesso pregam.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
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