O Estado de S. Paulo - 05/05
Atual quadro difuso pode vir a ser instrumento da tendência ao retrocesso da democracia no mundo
Você liga a televisão para saber o que acontece em sua cidade, no País e no mundo e é atropelado por galope verborrágico de notícias deprimentes ou lúdico/festivas. O que não emociona o povo também é noticiado, mas sem sensacionalismo.
Limitemo-nos ao Brasil, iniciando pelo quadro negativo: hospitais com pacientes nos corredores, falta de médicos e equipamentos avariados (o reparo, sempre já em licitação...). Atentados e vandalismo em escolas, mau estado de conservação e limpeza e falta de professores. Assaltos a caixas eletrônicos. Caos desumano no sistema presidiário. Miniassaltos no varejo das ruas. Salários atrasados e greves no serviço público (até na polícia) e em atividades vitais (como a dos caminhoneiros em 2018). Corrupção, violência (estupros...), drogas, tiroteios entre criminosos ou entre eles e a polícia – as vítimas inocentes, sempre atribuídas à polícia. Bailes funk com participantes portando fuzis. Acidentes e arrastões em estradas e ruas urbanas. Degradação ambiental, desastres naturais ou em razão de atuação humana (poluição, ruptura de barragens, alagamentos e desabamentos...). Queda na previsão do aumento do produto interno bruto (PIB) e aumento do desemprego. E por aí vai – angústia suficiente para o dia.
Passada a publicidade ou trocada a emissora, prevalece agora a alienação lúdica: carnaval estendido de muito antes até bem depois de seus dias normais, multidões nas ruas, alguns exaltados procurando seus segundos de glória (?) na telinha da TV. Sensacionalização das paradas gay. Glorificação do Rock in Rio. Praias cheias e rodovias congestionadas por turistas de fim de semana. Black friday que se estende por semanas. Consumismo natalino, substituto comercial da comemoração do nascimento de Jesus. Comentários entusiásticos sobre o Vasco x Flamengo da véspera; na falta de jogo desse gabarito vale qualquer outro, a mediocridade é transformada em espetáculo. E por aí vai, euforia sensacionalizada que deturpa a realidade.
É curioso observar que a classe alta participa da folia. O espetáculo lúdico e o ânimo folgazão do brasileiro serviriam à superação da desigualdade...? Talvez por curto tempo – o da folia espetacularizada.
Mas qual é o Brasil real? Nem o dramático nem o eufórico. Somos um país onde o povo vive condicionado por suas possibilidades e limitações, sujeito – por causa da sua fragilidade cultural – à desfiguração da realidade pela espetacularização do trágico e do eufórico.
A responsabilidade por essa situação cabe principalmente à condução política aquém do exigido pelos problemas brasileiros, do Brasil colônia até hoje. Vejamos o pós-1930.
O País viveu períodos autoritários e de democracia, contaminada em anos recentes pelo populismo. Em nenhum deles houve progresso efetivamente satisfatório na transição (que a Inglaterra viveu com tropeços na revolução industrial no século 18) da socioeconomia patriarcal/agrícola, ainda influenciada por sequelas culturais do passado, para a socioeconomia com o aumento expressivo da participação da indústria e dos serviços e o correlato aumento da classe média e do proletariado – ambos pretendentes à ascensão social e econômica, precariamente atendida. Sua complexidade foi agravada pela rápida e grande expansão demográfica (de 40 milhões para 207 milhões, quatro Argentinas em 90 anos) e pela urbanização desordenada, com suas periferias e favelas de baixo padrão de vida.
Atividades e empreendimentos de responsabilidade do Estado não evoluíram em ritmo compatível com a evolução demográfica e econômica e as razões do cenário do primeiro parágrafo não se vêm reduzindo, quando não têm aumentado. Como tem aumentado a ilusão psicótica do segundo parágrafo, tolerada ou até apoiada pelo poder público (aporte de recursos para o carnaval e outros eventos festivos...) porque anestesia o povo.
A interação da realidade mambembe dos serviços públicos com a expansão demográfica acelerada, a urbanização desordenada e a mediocridade cultural, vulnerável à alienação impulsionada pelo poder hipnótico da mídia, hoje sobretudo da TV, explica a receptividade popular dos noticiários que estimulam climas psicossociais tanto de indignação com as mazelas que flagelam o País como eufóricos, de alienação folgazã. Explica a indução de expectativas e pretensões de realização difícil e a predisposição do povo às manifestações de revolta – das ordeiras e pacíficas às violentas, dos delitos triviais à corrupção e às várias modalidades da delinquência criminosa –, até mesmo como alternativa de vida! E fato que se tem mostrado presente ajuda a explicar a visão e o comportamento político do povo com reflexos na eleição de poder político.
O quadro difuso sugere preocupação, porque ele pode vir a ser instrumento da tendência, que vem crescendo no mundo, de retrocesso da democracia, por ora discreto ou disfarçado – com exceções nem discretas nem disfarçadas: Venezuela, Turquia, Hungria... –, que flerta com ilusões redentoristas do nacionalismo autoritário.
O Brasil não está imune a esse risco e a pressão psicossocial do quadro negativo contribui para legitimar e até estimular o processo: o povo é levado a ver em lideranças populistas de propensão autoritária, na legislação forte e em políticas de questionável consistência democrática a solução para o déficit da condução política democrática. E a alienação-espetáculo alimenta a tolerância do povo com o cerceamento de liberdades, ressalvada, é claro, a da prática da folia.
Impõe-se dar solução aos problemas que embasam o cenário dramático e procurar moderar – no respeito à moldura democrática – em limites sensatos a deturpação mental do espetáculo sensacionalizado. Depende, portanto, do desempenho da condução política eleita pelo povo.
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