O Estado de S.Paulo - 24/04Só o Estado assegura o funcionamento do mercado, corrige suas falhas, garante direitos...
A liberdade, nos regimes políticos que protegem garantias fundamentais, é gratuita? É possível afirmar que, quanto menor é o Estado, maior é o alcance da liberdade? Em vez de ser solução, o Estado seria um problema? Respostas favoráveis a indagações como essas foram apresentadas durante a campanha eleitoral por candidatos e assessores de candidatos que, contrapondo libertarismo ou ultraliberalismo econômico à social-democracia, defenderam medidas como redução drástica do intervencionismo estatal, enxugamento do aparato governamental e híperresponsabilização dos cidadãos por suas escolhas de vida.
O libertarismo econômico defende mercados inteiramente livres – ou seja, não regulados. Enfatiza as liberdades individuais. É avesso a qualquer forma de dirigismo. E faz a apologia do direito privado como a espinha dorsal da ordem jurídica.
Contudo quem protege os cidadãos quando seus direitos são violados? A quem pedir proteção senão à polícia e à Justiça, instituições sustentadas pelos contribuintes? Quem assegura o equilíbrio dos mercados e preserva os bens dos cidadãos no caso de roubos? Na realidade, direitos são serviços prestados por órgãos governamentais e financiados por tributos. E essa forma de custeio depende de receita fiscal, orçamentos equilibrados e cálculos econômicos que envolvem horizonte de tempo e regras capazes de gerar previsibilidade e calculabilidade.
Meus professores de economia política diziam que sem Estado, cuja máquina demanda recursos e orçamentos, não há predição, sem predição não há segurança jurídica e sem a segurança de que as normas são aplicadas do mesmo modo a casos idênticos o jogo de mercado tende se tornar instável e assimétrico. Por tabela, como os direitos dependem de receita fiscal para ser eficazes na prática, sem impostos não há como preservar a propriedade privada e garantir a liberdade de iniciativa. No limite, quem quer mercado concorrencial tem, igualmente, de querer tributos. Direitos não apenas custam dinheiro. Também custam caro.
Para compreender essas ilações, que têm sido analisadas por juristas como Ronald Coase, Richard Posner e Stephen Holmes, é preciso não confundir valor e preço. Desde que o Código Civil napoleônico deu aos setores produtivos emergentes da revolução industrial garantias em matéria de liberdade de iniciativa, proteção à propriedade privada e formalização das obrigações, os direitos são uma das coisas mais valiosas que os cidadãos podem almejar. E eles valem muito mais que seu preço, mesmo que este seja alto. A noção do que é caro pode ser vista de diferentes modos. Em que medida dispomos de dinheiro suficiente para bancá-los? Ou até que ponto os custos dos direitos são altos porque o poder público é ineficiente, valorizando mais os interesses corporativos do funcionalismo do que os de quem precisa de seus serviços?
Quaisquer que sejam as respostas, nenhum direito valioso para os cidadãos pode ser concretizado se o caixa do Tesouro estiver vazio, diz Holmes. Isso permite ver a questão dos direitos a partir de uma ótica pouco usual entre nós. Por exemplo, os direitos fundamentais podem ser mensurados em termos de custo orçamentário? Essa é uma questão pertinente em países com desigualdade social, como o Brasil. Apesar de a carga tributária ser alta, o orçamento do poder público é apropriado por corporações de servidores, o que deixa os governos sem condições de atender às necessidades dos setores mais pobres da população. Outra questão é saber não só quanto custam os direitos, mas também como determinar quem decide a alocação de recursos escassos. Essa é uma questão que envolve as dimensões morais das distintas formas de liberdade nas discussões sobre justiça distributiva. Se a liberdade depende de impostos, sua cobrança pressupõe justiça fiscal, por meio de políticas tributárias não regressivas.
Um terceiro ponto de reflexão é sobre o papel das instituições legislativas e judiciais no estímulo ao crescimento econômico e à eficiência da economia, minimizando riscos e custo das transações. Clareza na definição de direitos propicia estabilidade nos negócios, segurança para os investimentos e cumprimento dos contratos. Mas quando o Estado é pouco eficiente e o ambiente institucional está minado por incertezas legais, dificultando o entendimento do presente e a formação de expectativas com relação ao futuro, as indefinições corroem as condições de que depende o desenvolvimento.
Em suma: se os direitos tendem a enfraquecer na ausência de um eficiente aparato institucional corretivo, a liberdade se esvazia quando o Estado não dispõe de recursos fiscais para assegurá-la. O que mostra a impossibilidade de ampliar a liberdade e ao mesmo tempo reduzir a carga tributária, como chegou a ser sugerido por assessores econômicos do candidato vencedor na campanha presidencial. Ignorando que as liberdades públicas só são respeitadas quando asseguradas pela força do Estado, eles incluíram na proposta de reforma previdenciária o esvaziamento de direitos individuais e sociais que nada têm que ver com esse tema. A justificativa foi desonerar as empresas e aumentar sua competitividade. Eles parecem não perceber que, para funcionar bem, a dinâmica entre a oferta e a procura pressupõe uma complexa urdidura de garantias e salvaguardas sustentadas pelos contribuintes. E ainda confundem economia de mercado com sociedade de mercado, onde tudo – inclusive opções políticas – se compra e vende.
Essa é a lição a ser aprendida por quem confunde libertarismo ou libertarianismo com liberalismo econômico: só o Estado assegura o funcionamento do mercado, corrige suas falhas, garante direitos de cidadania e possibilita o equilíbrio nas relações sociais. Onde o Estado é excessivamente mínimo, a liberdade cede vez à lei do mais forte e à força bruta do estado de natureza, como os milicianos e traficantes do Rio de Janeiro têm mostrado.
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