Eduardo Suplicy, um leitor comum, utiliza-se do Painel do Leitor para cobrar coerência de José Serra (Folha, 19/8). O ministro do Exterior pede que todos os países democráticos pressionem pela realização do referendo revogatório na Venezuela. Daí, conclui o ex-senador, Serra deveria apoiar a reivindicação de Dilma de uma consulta popular sobre a antecipação de eleições no Brasil. Na missiva, encontra-se um paralelo explícito, que é uma fraude lógica, e um implícito, que é uma fraude política. Na base dos dois, oculta-se uma omissão moral que, se não faz justiça à trajetória de Suplicy, ilumina a falência da esquerda latino-americana.
A fraude lógica: na Constituição brasileira, o instrumento de revogação de mandatos é o impeachment, não um plebiscito. Dilma clama por uma consulta inconstitucional; a oposição venezuelana, pelo cumprimento de uma norma inscrita na Constituição de 1999, marco inaugural da "revolução bolivariana". Suplicy sabe disso: em 2005, patrocinou uma emenda constitucional destinada a introduzir o recall de mandatos, mas não obteve apoio nem mesmo para levá-la a plenário.
A fraude política: a Venezuela do anoitecer do chavismo transforma-se em ditadura; o Brasil do ocaso do ciclo de poder lulopetista conserva a democracia. No Brasil, um STF independente supervisiona o processo de impeachment. Na Venezuela, um tribunal superior submetido ao Executivo suprime ilegalmente as prerrogativas da Assembleia Nacional eleita, de maioria oposicionista, e um conselho eleitoral controlado pelo chavismo viola as regras que possibilitam o referendo revogatório.
Anote, Suplicy. No Brasil, a presidente afastada usa o Palácio para acusar o Congresso, o Judiciário e a imprensa de promoverem um "golpe de Estado". Na Venezuela, líderes oposicionistas apodrecem na prisão sob sentenças farsescas denunciadas pela ONU, pela OEA e por organismos internacionais de direitos humanos. Aqui, a militância petista protesta nas ruas contra o impeachment; lá, milícias chavistas atemorizam os cidadãos e agridem manifestantes pacíficos. Aqui, os homens em armas protegem as fronteiras e garantem a segurança pública; lá, as forças armadas juram compulsoriamente lealdade ao chavismo. Suplicy quer mesmo comparar um país que tem políticos presos com um que mantém presos políticos?
Uma ditadura de esquerda não é melhor que uma ditadura de direita. Na sua longa trajetória pública, em nome dessa régua moral, Suplicy desafiou várias vezes seu partido. Poucos anos atrás, o ainda senador confrontou um tabu petista para defender o direito de viagem da blogueira cubana Yoani Sánchez. Sob esse pano de fundo, há algo de muito perturbador no persistente silêncio que conserva sobre a escalada autoritária do regime chavista. Engajado na difusão da lenda do golpe no Brasil, o Suplicy do passado apaga-se voluntariamente, dando lugar a um personagem diferente, disposto a submeter os princípios às conveniências.
A Venezuela não é o objeto mas apenas o pretexto da missiva de Suplicy publicada na Folha. Presos políticos? Soberania popular? Liberdades públicas? Garantias democráticas? Não, nada disso: o tema verdadeiro da cartinha é a manobra desesperada de Dilma na hora do ato conclusivo do processo de impeachment. O Suplicy do passado esclareceria sua opinião sobre a posição diplomática do Brasil diante do colapso da ordem democrática na Venezuela. O Suplicy do presente afasta, com um gesto enfastiado, os dilemas de princípio para cumprir uma missão partidária.
Serra declarou que "um país que mantém presos políticos não é uma democracia". Suplicy perde a oportunidade de cobrar-lhe coerência. A pergunta certa ao ministro é: por que, então, o Brasil não invoca a cláusula democrática contra o regime chavista? Mas essa é, precisamente, a pergunta que Suplicy nunca formulará.
Um comentário:
Falou tudo e mais um pouco! Parabéns e obrigado pelo post!
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