Um dia, no passado já distante, Lula clamou contra "300 picaretas" do Congresso. O gesto foi saudado por muitos, que nele enxergaram um grito de alerta sobre a corrupção e a impunidade. Em direção oposta, alguns raros dissidentes registraram que, na ausência de identificação nominal dos "picaretas", o então líder oposicionista apenas praticava demagogia. Hoje, o apelo do ex-presidente ao comitê de direitos humanos da ONU prova que os segundos tinham razão. Com seu novo gesto, Lula converte-se no porta-bandeira dos políticos corruptos: o chefe dos "300 picaretas".
O ex-metalúrgico tornou-se um dos homens mais poderosos da República. Ele presidiu o Brasil por oito anos, fez sua sucessora e, apesar de tudo, ostenta a condição de candidato presidencial viável em 2018. Já Sergio Moro, o alvo de sua denúncia à ONU, não é mais que um juiz de primeira instância: suas decisões, certas ou erradas, são manifestações tentativas, precárias e reversíveis, do Poder Judiciário. Por que Lula não arguiu a suspeição de Moro no Conselho Nacional de Justiça? Por que, alternativamente, não confia na reversão, pelas instâncias judiciais superiores, de uma futura sentença que imagina desfavorável?
Os advogados de Lula argumentam que o recurso à ONU amplia as garantias das liberdades civis vigentes no Brasil, conferindo materialidade a um direito de todos os cidadãos (Folha, 3/8). Eles mesmos admitem que rompem a regra básica do Pacto Internacional ao solicitarem a intervenção da ONU antes do esgotamento dos recursos internos, mas sustentam a exceção à regra pela suposta inexistência de "medida eficaz para paralisar a violação ao pacto". Num exercício radical de contorcionismo jurídico, pretendem convencer-nos de que a mera transformação de Lula em réu implica violência contra os direitos humanos. De fato, por esse atalho, veiculam a mensagem formulada por seu cliente: Lula está dizendo que o sistema de justiça brasileiro não merece confiança quando processa agentes políticos.
Na hora da execução das sentenças do mensalão, José Dirceu ergueu o punho fechado contra o STF, declarando-se um preso político e anunciando que recorreria a tribunais internacionais. O PT o acompanhou, mas Lula escolheu caminho diferente, prometendo que voltaria ao STF com as provas da inocência dos companheiros condenados. Passados três anos, agora é o próprio Lula quem segue o rumo indicado por Dirceu, colocando tacitamente sua assinatura nas resoluções petistas que acusam a Justiça de promover uma caça às bruxas politicamente motivada. Há, nisso, uma novidade relevante: em nome de seu interesse pessoal, o líder histórico do PT cruza a fronteira do respeito às instituições democráticas brasileiras. Ao fazê-lo, oferece um álibi a todos os políticos investigados por crimes de corrupção. Afinal, se nosso sistema de Justiça persegue um ex-presidente, por que não perseguiria, e de modo ainda mais ignóbil, políticos de menor estatura como um Eduardo Cunha, um Fernando Collor ou um Paulo Maluf?
O ofício do advogado é defender seus clientes, não cultivar a lógica ou procurar a verdade factual. Os advogados de Lula mencionam 2.756 comunicações à ONU por violações de direitos em diferentes países, além de 12 condenações aplicadas à França e 39 à Austrália. Não nos dizem, porém, quantos ex-governantes de países democráticos solicitaram a intervenção de tribunais internacionais contra a simples abertura de um processo criminal na instância judicial inferior. O recurso de Lula à ONU é um gesto inédito, uma anomalia. Seu alvo real não é Moro, mas o Poder Judiciário. Sua finalidade é proteger o "direito à impunidade", um bem precioso da elite política brasileira posto em xeque desde o julgamento do mensalão.
A história descreve piruetas. Lula tem uma bandeira e os "300 picaretas" têm um líder.
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