O GLOBO - 06/08
Não é fácil criar políticas afirmativas. Elas são complicadas, porém mais complicado do que não fazer nada é se omitir. Escolhemos a dor menor
O Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão criou novas regras para verificar a veracidade da autodeclaração prestada por candidatos negros ou pardos em concursos. A partir de agora, quem optar por concorrer pelo sistema de cotas raciais passará pela análise de uma comissão que avaliará os “aspectos fenotípicos do candidato, os quais serão verificados obrigatoriamente com a presença do candidato”.
A medida está sendo objeto de muito debate, para o qual queremos contribuir na qualidade de militantes do movimento negro. O foco e o valor maior em discussão são a capacidade de a sociedade combater o problema das fraudes na obtenção do benefício das cotas. Em tempos em que a corrupção, felizmente, se torna cada vez mais abjeta perante a comunidade, temos que acabar com mais essa modalidade que vem apresentando.
O combate ao racismo e à injustiça social é questão de alto grau de complexidade, daí valendo lembrar a lição de H. L. Mencken: “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. A autodeclaração foi uma solução simples e que funcionou bem durante algum tempo, mas o transcurso do tempo traz novos desafios. A dinâmica das transformações sociais envelhece algumas soluções, demandando aperfeiçoamentos.
A solução da autodeclaração, prática, rápida e um pouco menos indolor, funcionou até que a consolidação das cotas e as mudanças sociais fizessem com que os “malandros” passassem a se dispor a prestar uma autodeclaração falsa que lhes abrisse as portas das universidades e concursos. E nenhuma sociedade se livra do racismo e da injustiça sem algum tipo de dor.
A sociedade sabe que não é fácil criar políticas afirmativas. Elas são complicadas, porém mais complicado do que não fazer nada é se omitir. Escolhemos a dor menor.
As cotas são polêmicas, muitos brancos e negros são contra elas, outros a favor, e implementá-las bem é doloroso, mas o Congresso Nacional e o STF escolheram a dor do desafio de fazer tais políticas, em lugar da dor de manter o racismo que tolda nossa sociedade.
Nessa mesma toada, temos que lidar com a dor de escolher critérios para identificar quem merece/precisa das cotas, e ir atualizando os modelos sempre que necessário. Nós, particularmente, não nos sentimos muito confortáveis com uma comissão de avaliação racial, mas se temos cotas raciais, esta dor é substancialmente menor do que ver o sistema ser objeto de malandragens e fraudes.
Cada fraudador de cotas tira a vaga de alguém que as merece na forma da lei e, pior, coloca mais um corrupto no serviço público.
Ficou famoso o caso da UnB, em 2012, quando uma banca considerou um gêmeo univitelino negro e outro não. O caso confirma a complexidade do problema, mas não é porque tivemos um erro médico ou judiciário que extinguimos os hospitais ou o Poder Judiciário. O risco de erro sempre existe, mas a comissão vai evitar casos como o do Itamaraty, em que louros de olhos verdes e nipônicos se autodeclararam negros para entrar pelas cotas. E eles têm se multiplicado, colocando em risco a política das cotas e dando oportunidade a corruptos. Nesse cenário, lidar com as dificuldades de uma comissão compensa com larga margem, pois evitaremos as funestas consequências de permitir fraudes e ingresso de corruptos.
Estamos certos de que até aqueles que ainda são contra as cotas irão concordar que, já que se trata de lei considerada constitucional pelo STF, todos devemos trabalhar para que ela seja cumprida, ao invés de ridicularizada. Uma política pública não pode ser pervertida por aqueles que escolhem o caminho fácil da fraude.
Em nota, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial afirmou que a medida “contribui para consolidar as iniciativas do poder público que visam à redução das desigualdades históricas e à promoção da igualdade racial em nosso país” e considerou que “se trata de uma medida legítima e oportuna, que busca direcionar as políticas públicas aos que realmente têm direito a ela”.
Viemos a público dizer que, por nossa experiência de décadas lidando com o problema do racismo, aplaudimos a inovação e a referendamos como positiva.
Frei David Santos é especialista em ações afirmativas e William Douglas é juiz federal
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