O GLOBO - 12/08
Foro por prerrogativa de função merece ser abolido de nossa Constituição
Recentemente, o STF aceitou denúncia contra o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), pela suposta prática do crime de incitação ao estupro, em razão de ter dito, no plenário da Câmara dos Deputados e em entrevista para um jornal, que a também deputada Maria do Rosário (PT-RS) não mereceria ser estuprada, já que seria muito feia. O parlamentar, com as suas palavras, conseguiu duas façanhas: a primeira foi modificar o entendimento de uma das turmas do Supremo a respeito do alcance da imunidade dos parlamentares por suas palavras e opiniões, que outrora, quando proferidas “on the floor of the House”, era considerada absoluta; a segunda foi a união da dividida sociedade brasileira, mesmo que por um átimo de segundo, já que desde freudianos e lacanianos, passando por anarquistas e burocratas, todos condenaram a manifestação do deputado.
A decisão do Supremo talvez sirva de pontapé inicial para um amplo debate sobre as prerrogativas (ou seriam privilégios?) que a nossa Constituição outorgou aos parlamentares. Focarei em duas: a inviolabilidade dos parlamentares quanto às palavras, votos e opiniões, também conhecida como imunidade material, e o foro por prerrogativa de função, ou, como preferem alguns, o foro privilegiado.
A imunidade material tem por objetivo assegurar o bom exercício do mandato parlamentar, sendo, sob essa perspectiva, muito mais uma prerrogativa do que um privilégio. Ela significa que os parlamentares não serão repreendidos, na esfera cível ou penal, por suas palavras e opiniões.
Sem dúvida, a imunidade material tem que existir. Contudo, o problema é que o STF se utilizava de um critério espacial, importado dos Estados Unidos, que não faz muito sentido, segundo o qual tudo o que for proferido sobre o “chão” da Casa Legislativa, mais especificamente no plenário, é protegido pela imunidade, pouco importando o teor do que foi dito. Agora, com sua recente decisão, o Supremo colocou os pingos nos is: fora ou dentro do plenário, pouco importa, para fazer jus à imunidade, a manifestação deve guardar pertinência com a atividade política.
Quanto ao foro por prerrogativa de função, esse, sim, merece ser abolido de nossa Constituição. Aqui o privilégio se impõe sobre a prerrogativa. O ministro Roberto Barroso, em recente artigo, colocou o dedo na ferida: o prazo médio para recebimento de denúncia pelo STF é de 617 dias, ao passo que um juiz de primeira instância demora, como regra, menos de uma semana. Não que os ministros sejam lentos, mas é que o Supremo não foi concebido para funcionar como uma vara criminal.
Em suma, o que parece é que alguns, com a defesa intransigente das prerrogativas de deputados e senadores, querem voltar à França do século XVIII, quando quem pusesse a mão nos parlamentares era considerado traidor, infame e digno de morte. Nada mais absurdo.
Antonio Pedro Pellegrino é advogado
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