O ESTADÃO - 07/07
O êxito de uma travessia, em águas revoltas e insidiosas, é alcançar a outra margem, sem grandes perdas.
Não se pode cobrar, portanto, do governo interino de Temer grandes ousadias, como reclama o mercado. Afinal, ele tem de gerir a mais calamitosa herança governamental de que se tem notícia na história brasileira. Tem de enfrentar uma ardilosa guerrilha política, os caprichos de parlamentares viciados em práticas pouco virtuosas e um processo de impeachment, excessivamente formalista. A ansiedade por medidas, que demonstrem a disposição de enfrentar o dramático déficit fiscal, desconsidera as restrições de natureza política.
Os reajustes de servidores públicos, já aprovados na Câmara e os que ainda não integram os projetos de lei – como os dos funcionários da Receita Federal –, constituem compromissos que, conquanto não tenham valor jurídico, devem ser honrados, porque foi empenhada a palavra do Estado. Esse entendimento não autoriza concluir que a celebração desses acordos, tal como ocorre entre empresas e sindicatos, deva ser a forma de negociar reajustes de vencimentos de servidores. A rigor, representa um flagrante menosprezo ao papel constitucional do Congresso e às regras de responsabilidade fiscal.
O legado maldito inclui também os imprevisíveis “esqueletos” financeiros, constituídos principalmente pela necessidade de aporte financeiro às estatais, e a caótica situação dos Estados e municípios, fruto da imprevidência fiscal e da recessão econômica.
O Rio de Janeiro, sede da Olimpíada, é o exemplo mais visível da situação falimentar da grande maioria das entidades subnacionais. A expansão descontrolada das despesas de custeio, em parte sustentada pelas instáveis receitas dos royalties, e a liberalidade na concessão de incentivos fiscais inconstitucionais converteram o Rio em uma espécie de Grécia do Sul, em que os aposentados não recebem vencimentos e a polícia recepciona os turistas com um “bem-vindo ao inferno”, ao mesmo tempo que houve o sucateamento da saúde pública e a instituição do império do crime pelos marginais.
Todos os especialistas sabem que não haverá equilíbrio fiscal sem uma profunda reforma da Previdência Social. Seu custeio responde praticamente por todo déficit fiscal. Essa imprescindível reforma, contudo, requer um tempo de maturação incompatível com a travessia.
A prudência para reconhecer os fatos consumados e postergar as reformas politicamente mais sensíveis não significa abdicar de iniciativas que possam sinalizar um novo rumo. Em menos de dois meses da interinidade, logrou-se a aprovação da Lei das Estatais, que pretende evitar o indevido uso político daquelas entidades. Afora isso, o bom encaminhamento da DRU, da Lei de Qualidade Fiscal e da renegociação da dívida com os Estados, ainda que pendentes de aprovação pelo Congresso, constituem avanços em favor do equilíbrio e da governança fiscal.
A PEC de limitação dos gastos públicos, por ora, deve ser entendida apenas como uma intenção. Ela é claudicante, ao preservar erros apontados em artigo anterior (A travessia e seus desafios, 2/6). Deveria, além disso, alinhar medidas preventivas para deter o crescimento das despesas e não anunciar improdutivas penas pelo descumprimento desse objetivo. Insisto na revisão da malsinada lei de regularização de ativos irregulares no exterior.
De igual forma, é imprescindível conferir liquidez à montanha de recursos represada na dívida ativa e no contencioso administrativo. Uma boa pista seria construir outra regra para o ágio, cuidando de recuperar receitas, cujo destino será o longo caminho do debate constitucional.
Rever os incentivos fiscais pode ser uma boa oportunidade para rediscutir a matéria e detectar prováveis focos de corrupção. Um mau presságio é a pretensão de legalizar os jogos de azar, uma das mais elaboradas formas de lavar dinheiro, promover o crime e estimular o transtorno do jogo, onerando desnecessariamente os combalidos serviços de saúde.
*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)
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