O ESTADO DE S.PAULO - 08/05
Se o Senado cassar o mandato da presidente Dilma Rousseff, será certamente pelo conjunto da obra, o maior desastre econômico desde a crise dos anos 1930, mesmo se o julgamento ficar limitado, formalmente, a dois quesitos – as pedaladas fiscais e os decretos abusivos de abertura de créditos suplementares. Não se trata de condenar uma autoridade apenas por sua incompetência, embora seus erros, acumulados em muitos anos, tenham proporções olímpicas. Trata-se de levar em conta a história completa de uma administração, com um conjunto coeso de tolices, desmandos e irresponsabilidades. As irregularidades cometidas nos últimos anos foram componentes de um estilo de governo. Não foram tropeços ocasionais, separáveis do conjunto. Bem ao contrário: foram atos praticados para garantir tanto a reeleição quanto a continuidade de um padrão político e gerencial.
Pela mesma razão, é absurdo cortar a sequência dos fatos, como se as ações praticadas a partir de janeiro de 2015 fossem explicáveis sem as barbaridades cometidas até 2014. Segundo a Constituição, “o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”. Nenhum ato discutido no processo de impeachment foi estranho às funções da presidente. E nada, no texto constitucional, proíbe a referência a um mandato anterior. Supor essa proibição equivale a autorizar – e, mais que isso, a estimular – irregularidades na busca da reeleição.
Mas a defesa da presidente Dilma Rousseff tem recorrido a outras alegações igualmente ruins. Não se pode condenar um governante, argumentou um defensor, quando suas decisões são fundamentadas pela opinião de um técnico. Em relação às pedaladas e a outras barbaridades orçamentárias, essa afirmação é grotesca.
Durante o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, essa fundamentação seria fornecida pelo secretário do Tesouro, famoso internacionalmente por sua contabilidade criativa. A presidente nele confiava e até lhe dava mais atenção que ao ministro da Fazenda. Mas não poderia, nem deveria, desconhecer o noticiário frequente sobre a criatividade contábil e sobre a maquiagem das contas públicas.
Este reconhecimento a imprensa merece. Os grandes jornais cobriram com atenção e competência a gestão das finanças federais. Foram capazes de mostrar as manobras para disfarçar a piora do balanço fiscal. Cobriram tanto as informações mensais do Tesouro e do Banco Central quanto as entrevistas, com explicações cada vez mais espantosas, do secretário do Tesouro. A cobertura foi mantida, sempre atenta, no segundo mandato, com a reafirmação da piora das contas públicas e a discussão dos atos governamentais.
Até 2014 a presidente ou desconheceu as informações da imprensa ou decidiu desprezá-las, dando preferência às versões produzidas pela contabilidade criativa. Depois disso, continuou agindo como se nenhuma advertência transmitida pelos jornais e por outros meios idôneos fosse relevante ou confiável. Além disso, houve alertas dentro do próprio governo. Técnicos do Tesouro chamaram a atenção para irregularidades e produziram documentos sobre o assunto, revelados em reportagem do jornal Valor. Resumindo: todo cidadão interessado no manejo das contas públicas sabia dos problemas, enquanto a presidente insistia em desconhecê-los ou em menosprezar sua importância.
A presidente ignorou ou desprezou as informações porque essa foi sua escolha. Não teve sequer o trabalho de verificar se as advertências e denúncias tinham algum fundamento. Se chegou a cuidar do assunto, deve ter logo desistido, ou, pior, preferiu aceitar as irregularidades e maquiagens e, portanto, consagrar os erros e desmandos como componentes de sua administração e de sua estratégia de conservação do poder.
A irresponsabilidade e a preferência pela maquiagem foram muito além das pedaladas e dos decretos irregulares. Com as pedaladas, o Tesouro adiou por muito tempo os desembolsos para certos programas e tornou-se devedor, irregularmente, de bancos públicos. Com os decretos de abertura de créditos orçamentários, a presidente foi além de seus poderes. Mas a irresponsabilidade e os disfarces foram marcas de toda a sua gestão.
Ao manter os controles de preços dos combustíveis, o governo impôs enormes perdas à Petrobrás e a milhares de acionistas minoritários. Ao conter politicamente as tarifas de energia elétrica, desarranjou as finanças das concessionárias. Ao tentar socorrê-las com recursos públicos, criou mais custos e desajustes para o já sacrificado Tesouro Nacional. O reajuste das contas de eletricidade, afinal inevitável, teve enorme impacto inflacionário, agravando o estrago nos orçamentos familiares.
A mesma preferência pelo voluntarismo, pela intervenção mal planejada e por políticas industriais arquivadas há décadas em outros países favoreceu o protecionismo, o uso discricionário de incentivos fiscais e financeiros e a proteção a grupos privilegiados. Nesse ambiente, nada mais natural que o fracasso das concessões de infraestrutura, valorizadas, afinal, somente como fontes de recursos – os famosos bônus – para reforço do Tesouro. A perda de muitos bilhões pelo BNDES em investimentos destinados a apoiar os favoritos da corte é parte dessa política.
Não há como separar do conjunto da obra as pedaladas fiscais e os decretos abusivos. Esse conjunto foi muito mal concebido como política de desenvolvimento, mas todos os seus componentes são muito interligados como integrantes de um estilo voluntarista, irresponsável e desastroso de uma política voltada para a perpetuação de um grupo no poder. A ocupação predatória do Estado foi um item fundamental dessa política. Uma parte dessa aventura tem sido contada na Operação Lava Jato. Como desmembrar essa história?
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