Se o nome Trudeau é cultuado é porque Pierre foi um líder transformador que conclamou o Canadá a se definir
Feliz é o país que sai de uma eleição sentindo-se mais leve, livre e solto e com uma agenda adequada à monumental encrenca da vida em sociedade no século XXI. Desde terça-feira, o Canadá está jorrando felicidade — pelo menos a expressiva maioria dos canadenses que elegeram Justin Trudeau está.
O triunfo do Partido Liberal, de centro-esquerda, foi acachapante: saltou de 36 para 184 cadeiras num Parlamento de 338 membros. Tem, portanto, folgada maioria para inovar na forma de combater os problemas mais críticos da atualidade. O Canadá quer voltar a sonhar ser um país cool como nos anos 1970 e 80, quando era governado pelo líder ocidental mais instigante e fora da curva: Pierre Elliot Trudeau, pai do vencedor desta semana.
Trudeau sênior foi um dentuço cheio de charme, bem-nascido e enorme bagagem intelectual que chegou ao poder já quase cinquentão e solteiro. Acostumou seus pares a levá-lo a sério, apesar de despachar usando tênis e jaquetas esporte. No terceiro ano do primeiro mandato (1968-1979), casou-se com a jovem Margaret, de 22 anos e olhos cor de água-marinha, irrequieta filha de um ex-ministro. Com ela, formou o primeiro casal no poder inserido na contracultura dos anos 60. John Lennon apostava em Trudeau para dar “chance à paz”, e Yoko o aprovava pelo carisma. O casamento se desfez quando Margaret foi fotografada no mítico Studio 54 de Nova York enquanto o marido governava o Canadá.
É inesgotável o baú de histórias que compõem perfil pessoal da família. Mas se o nome Trudeau continua a ser cultuado até hoje é porque Pierre foi um líder transformador que conclamou a nação a se definir. Como ministro da Justiça, liberalizou as leis do divórcio e modernizou o Código Criminal. Como primeiro-ministro, legou ao Canadá uma avançada Carta dos Direitos e das Liberdades. Pierre Trudeau tinha visão, convicções e pulso forte. Implodiu um violento movimento separatista no Quebec e entregou ao sucessor um país consciente do quanto a diversidade e o multiculturalismo são centrais para a unidade nacional.
Até uma década e meia atrás, nada indicava que outro Trudeau se apresentaria querendo fazer política. Até porque, ao contrário dos Estados Unidos, o Canadá jamais foi terreno fértil para o surgimento de dinastias políticas.
Foi na morte do pai em 2000 que Justin Trudeau se descobriu orador; e o país inteiro, que estava sintonizado na transmissão do enterro, pôde ver o filho com olhos novos. Enquanto Jimmy Carter, Fidel Castro e Leonard Cohen, o poeta e trovador canadense da voz cavernosa, tiveram direito a uma alça do caixão, espelhando a biografia eclética do morto, coube ao primogênito, então com 28 anos, fazer o discurso de despedida. E Justin arrasou.
Formando em Educação, à época ele dava aulas de Francês e Matemática em dois colégios da Costa Leste e não considerava a carreira pública. Passara a infância e a adolescência sob holofotes constantes, uma vez que a trudeaumania vigente se aplicava à família inteira. Nunca chegou a sumir do foco nacional, mas tampouco era visto como herdeiro político do pai. Era um eterno “famoso”.
Justin Trudeau não teve pressa. Esperou constituir família — tem três filhos com uma charmosa apresentadora de televisão — antes de testar a política partidária. Depois, elegeu-se deputado duas vezes, tornou-se líder do Partido Liberal e agora, aos 43 anos, tem um país do tamanho e peso do Canadá para governar.
Seu primeiro telefonema como chefe de governo, dado menos de 24 horas após assumir o cargo, foi para Barack Obama, na Casa Branca. Informou o presidente americano que o Canadá deixará de participar da coalizão militar contra o Estado Islâmico, liderada pelos Estados Unidos. Os seis aviões de combate canadenses atualmente envolvidos em bombardeios a alvos jihadistas serão repatriados. Em troca, oferece ajuda humanitária e treinamento militar.
Também estaria inclinado a cancelar uma polêmica compra bilionária de 65 caças F-35A da Lockheed Matin, por considerar o gasto obsceno.
Sua lista de promessas de campanha a cumprir também inclui a liberação imediata da maconha, uma profunda reforma do sistema judiciário, o engajamento radical do país no combate às mudanças climáticas e o retorno do Canadá a seu perfil multicultural. “Diversidade é o que somos e o que fazemos. O desenvolvimento de sociedades em que culturas diferentes possam construir algo em comum é um dos problemas globais mais urgentes e difíceis”, acredita Trudeau. As legiões de refugiados errantes que vêm sendo enxotadas de fronteira em fronteira no continente europeu concordariam se pudessem ouvi-lo.
Mas é a promessa de combater o vilão da galopante desigualdade mundial entre ricos e pobres que definirá, em última instância, a que tipo de verbete Justin Trudeau terá direito quando sair do governo. Convencido de que a cartilha da austeridade ortodoxa não tira ninguém do buraco, ele promete trocar a receita: aumentar impostos para os mais ricos, baixar os da classe média, dobrar os investimentos em infraestrutura e não se desesperar com déficit público.
“De repente”, escreveu a revista “New Yorker”, “a política no Canadá parece bem mais sexy do que a nossa”. Pode ser.
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