O ESTADÃO - 17/05
Numa situação em que um governo precocemente envelhecido luta para alcançar alguma estabilidade e, com isso, ter condições mínimas de sobrevivência, é natural que curtas manobras de cabotagem tomem o lugar de reflexões de mais fôlego, que indiquem novas rotas de navegação. Em tal cenário, tanto mais curioso que tenha passado em relativo silêncio recente intervenção do ministro Mangabeira Unger, de Assuntos Estratégicos, em favor de uma reaproximação com os Estados Unidos, baseada em complementaridade de interesses e afinidade “profunda” entre os dois países. “É nossa República irmã”, sintetizou o ministro.
Afirmação corajosa, ainda mais que se presta a contestações fáceis em certos ambientes de esquerda – mas não em toda ela! – nos quais o antiamericanismo constitui patologia renitente, a embaçar análises diferenciadas sobre o papel global daquele país no século 20 e neste início de 21, ora esteio das liberdades, como na crucial aliança antinazista, ora promotor de ditaduras até em seu “quintal”, com a arrogância própria de toda potência dominante.
O ministro Unger, sem desprezar a casa comum sul-americana, embora sugira redimensionar por ora o escopo do Mercosul, admite que os dois grandes países, com povoamento europeu e forte marca da escravidão, apresentam ainda semelhanças inquietantes na questão social. Dispensável dar exemplos da obscena injustiça brasileira. E basta correr os olhos sobre boa parte da produção acadêmica norte-americana para pinçar, como um mantra nada tranquilizador, a expressão “crescentes desigualdades”, a empanar a ambição de constituir vasta nação majoritariamente de classe média, como pareceu possível com a intervenção rooseveltiana, nos anos 1930, e os programas da “grande sociedade”, nos anos 1960.
Tais crescentes desigualdades, numa leitura economicista, estariam na raiz da crescente radicalização política naquele país, dividido, há já algumas décadas, entre dois blocos – há quem diga duas “culturas” e até duas visões de mundo – inconciliáveis. De um lado, os “liberais”, mais próximos de uma visão positiva do Estado como regulador da economia e estimulador, como mostra o “Obamacare”, de uma rede proteção para os mais pobres; de outro lado, os conservadores, defensores da retração do Estado regulador, ainda que estimulem gastos com a defesa bem mais altos, numa espécie de keynesianismo militar, e defensores, também, de menos impostos para os mais ricos e redução dos programas sociais clássicos, como a seguridade e a assistência de saúde.
Sem desconhecer as diferenças entre os dois contextos, o de uma antiga democracia e o de uma democracia que mal completa 30 anos, talvez possamos considerar a realidade norte-americana como uma advertência sobre males que ainda seja possível evitar ou, mais realisticamente, atenuar por aqui.
Paul Krugman fala, a respeito de seu país, de um nível de polarização não atingido desde a Guerra Civil. Ronald Dworkin alarmou-se, em alguns de seus últimos trabalhos, com o estado de conflito permanente entre azuis (democratas) e vermelhos (republicanos), que fez decair a vida cívica a patamar inédito: sem um terreno comum entre os contendores, que, apesar de tudo, ele se obstinava em reconstruir, o filósofo enxergava a esfera pública, nos anos de George W. Bush, como carente de qualquer discussão racional “decente”.
Acumulavam-se, então como hoje, conflitos sobre política econômica e sobre valores, sobre temas estritamente materiais e outros de caráter fortemente simbólico, como o papel da religião na comunidade política, o aborto ou o casamento homoafetivo. Essas discussões são legítimas e provavelmente, ainda que com novas roupagens, sempre se reapresentarão. O que é menos legítimo, ou desejável, é que sejam vividas como “guerra de valores” ou “choque de culturas” avessas ao diálogo e às áreas de consenso. Este último, naturalmente, só pode ter a forma de compromisso sob o signo da liberdade e da igualdade entre todos os indivíduos – elementos fundadores da grande nação do Norte.
Olhando-nos no conturbado espelho norte-americano, vemos sinais, ainda que neste caso negativos, de complementaridade e afinidade, para usar as expressões iniciais de Mangabeira Unger. Também entre nós sopram os maus ventos do radicalismo. Trata-se de processos muito diversos, mas o fato é que a bem-vinda ascensão de uma esquerda ao poder, a partir de 2003, não cancelou nesta esquerda as marcas de seu primitivo “espírito de cisão”, com o qual quis contrapor-se a toda a História anterior do País, vista como uma sucessão de males e desastres.
Tal espírito, compreensível em estágio inicial de um partido com vocação de poder, termina por deixar marcas na forma de conceber alianças, combater adversários ou exercer o poder. Degrada-se em espírito de facção e corrói a dialética democrática. Molda à sua imagem e semelhança toda uma cultura política, dando-lhe os trajes do integrismo e da intolerância. Lá, os republicanos tomaram a iniciativa da radicalização e do confronto, papel aqui paradoxalmente desempenhado pela subcultura petista. Nenhuma novidade nisso: afinal, como se sabe, conteúdos ideológicos antagônicos podem encarnar em estruturas mentais assemelhadas.
Não há quem fale a sério em duas “visões de mundo” em conflito de vida ou morte, mas já há um simulacro de guerra no debate brasileiro. Nem por ser só retórico, o repertório bélico deixa de ser nocivo à troca acesa de argumentos que, como modelo ideal, deveria reger as relações entre atores políticos e sociais.
Mais grave: o ator de esquerda, entre nós, terá perdido por muitos anos qualquer verdadeira capacidade hegemônica à moda de Roosevelt, tornando-se, ao contrário, fator de involução da vida em democracia.
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