O ESTADO DE S. PAULO 21/12
Comparar as duas situações é um erro: em 2003, reformas tinham aberto caminho para a expansão; agora, será preciso corrigir erros do primeiro mandato de Dilma
As condições econômicas herdadas em 2003 eram indubitavelmente melhores do que as atuais, frustrando expectativas apressadas dos que acreditam que bastaria um nome respeitável à frente da Fazenda para criar um choque de credibilidade e um círculo virtuoso levando à retomada do crescimento. A competência de Joaquim Levy tem sido amplamente demonstrada ao longo de sua carreira. Contudo, nem a sua excelente formação acadêmica, nem o seu sucesso profissional no FMI, ou como secretário do Tesouro, ou ainda como secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, o qualificam para realizar milagres.
Diferentemente do que ocorreu em 2003, a retomada do crescimento econômico e a queda da inflação somente ocorrerão depois de um extenso período de taxas de crescimento baixas ou mesmo negativas; de elevação do desemprego; e de inflação excedendo o limite superior do intervalo que contém a meta. Em 2003 as reformas do governo anterior pavimentaram o caminho para um ajuste rápido e com baixos custos; agora o País sofre as consequências dos erros acumulados no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.
Cenário externo. A primeira diferença entre 2003 e 2015 está no cenário externo. O ano de 2003 marca o início do forte ciclo de elevação dos preços internacionais de commodities e de ganhos de relações de troca, que provocaram um crescimento explosivo das exportações brasileiras. O crescimento acelerado das exportações fez os superávits comerciais saltarem de US$ 10 bilhões em 2002 para US$ 20 bilhões em 2003, e mesmo com o câmbio real em contínua valorização, atingiram US$ 30 bilhões em 2004 e US$ 40 bilhões em 2005.
Foi o impulso vindo do aumento das exportações líquidas que rapidamente extinguiu a curta recessão de apenas dois trimestres, e a partir do segundo trimestre de 2003 provocou seis trimestres consecutivos de taxas anuais de crescimento superiores a 4%. Hoje, a desvalorização cambial já ocorrida ainda não foi suficiente para neutralizar o efeito negativo da queda dos preços de commodities e do magérrimo crescimento das exportações mundiais, que nos levam a déficits comerciais que não param de crescer.
A segunda diferença está na característica de “profecia autorrealizável” da crise de 2003. Por isso, ela poderia ser facilmente eliminada com o retorno à austeridade fiscal. O partido que apoiava Lula alardeava aos quatro ventos que o Brasil somente poderia crescer com o repúdio à divida pública. Quando Lula se elegeu, a dívida líquida do setor público, que deduzia da dívida bruta apenas o pequeno estoque de reservas internacionais, atingia em torno de 50% do PIB, dos quais a metade era dolarizada. A depreciação cambial elevava a relação dívida/PIB, cujo crescimento teria que ser truncado com o aumento dos superávits primários.
Mas o PT pregava o repúdio à dívida em vez de apoiar a austeridade fiscal. Diante disso, os detentores dos títulos de dívida soberana defendiam-se do risco do default vendendo-os, deprimindo seus preços; e os estrangeiros vendiam títulos públicos no mercado doméstico remetendo os dólares para o exterior. Com isso os prêmios de risco dos títulos de dívida soberana escalaram para perto de 2.500 pontos base, refletindo elevada probabilidade de default, e a taxa cambial escalou para perto de R$ 4 por dólar, o que empurrou a taxa de 12 meses do IPCA para mais de 17% ao ano.
Aquela inflação era muito mais elevada do que a atual, mas diferentemente da atual, que é rígida para baixo devido aos reajustes salariais, podia declinar aceleradamente quando a eliminação da “profecia autorrealizável” levasse à valorização cambial. Isto dependia apenas do compromisso do governo Lula com a austeridade fiscal. A “carta aos brasileiros”, ainda durante a campanha eleitoral, foi o primeiro passo nessa direção, que se complementou com a nomeação de Palocci e de Meirelles para a Fazenda e Banco Central, respectivamente. A elevação do superávit primário foi ajudada pela “inflação surpresa”, que chegou a 17%, cortando os salários reais dos funcionários públicos e os fluxos reais das despesas de custeio e de capital. A frase de Palocci, repetida à exaustão naqueles anos, foi: “faremos o superávit primário que for necessário para reduzir a relação dívida/PIB”, e resume a orientação da política fiscal, cuja austeridade prosseguiu mesmo depois do corte de gastos gerados pela “inflação surpresa”, e foi muito ajudada pelo crescimento da receita vinda da retomada do crescimento. Ao lado disso, Lula deu ao Banco Central a independência necessária para elevar a taxa de juros quanto fosse necessário para trazer a inflação de volta à meta.
Tripé macroeconômico. O sucesso da estratégia em 2003 deveu-se ao retorno ao tripé da política macroeconômica, mas não foi este retorno que garantiu seus baixos custos. Estes foram devidos a dois fatores. Primeiro, a eliminação da causa da “profecia autorrealizável” permitiu a valorização cambial, derrubando a inflação. Segundo, a retomada do crescimento foi impulsionada pela elevação dos preços internacionais de commodities; pelos ganhos de relações de troca; e pelo acelerado crescimento das exportações mundiais, que puxaram as exportações brasileiras.
Hoje, a elevação do superávit primário para 1,2% do PIB prometido por Levy é ainda insuficiente para reduzir a relação dívida/PIB, mas mesmo assim é grande tanto relativamente à elevação ocorrida em 2003, quanto com relação a um aumento ainda maior, em 1998. Levy não poderá contar com uma “inflação surpresa” reduzindo os salários reais de aposentados e funcionários públicos, e por isso terá que lançar mão: de aumentos de impostos e de preços administrados; e de cortes de gastos que, isoladamente, levam a uma desaceleração no crescimento do PIB. Ademais, o ajuste fiscal de 2015 será apenas um primeiro passo, que terá que ser seguido de outra elevação do superávit primário em 2016. Somente a partir de então a dívida bruta terá condições de, talvez, iniciar uma trajetória de queda com relação ao PIB.
Dólar. Para piorar as condições, em vez de contar com a valorização cambial o país terá que enfrentar uma depreciação adicional do câmbio real de forma a reduzir o déficit nas contas correntes que se aproxima rapidamente de 4% do PIB. O peso sobre a taxa cambial é ainda maior porque os ganhos de preços de commodities que existiram a partir de 2003 foram substituídos por um ciclo de quedas e pelo encolhimento do comércio mundial, aos quais se soma um ciclo de valorização do dólar norte americano, que não deverá ser interrompido tão cedo. A combinação da correção de preços administrados com a depreciação cambial eleva a inflação, que não mais poderá ser combatida com a estratégia preferida no primeiro mandato de Dilma Rousseff - o represamento dos preços administrados e as desonerações tributárias em produtos com peso elevado no IPCA -, e sim com a elevação da taxa de juros, o que contribui ainda mais para a desaceleração da atividade econômica.
Complexidade. O que fica claro neste breve resumo é que não há, neste quadro, nada que se assemelhe a um ajuste simples, nem que conte com a ajuda da economia internacional. A única peça em comum com o ajuste de 2003 é o fato de que o Brasil terá que retornar ao tripé da política macroeconômica.
O quadro seria um pouco mais favorável caso se repetisse, a partir de 2015, o ciclo de elevação do consumo que veio dos efeitos das reformas microeconômicas na expansão do crédito às famílias. No período que se inicia em 2015, o endividamento das famílias e o enfraquecimento do mercado de trabalho funcionam como freios ao consumo. Seria, também, melhor, caso a restauração da credibilidade na política macroeconômica pudesse remover parte substancial dos riscos que deprimem os investimentos em capital fixo. Mas neste ponto somos afetados por outro choque, decorrente das denúncias de corrupção na Petrobrás. Levará tempo até que o crime praticado contra a Petrobrás a livre dos efeitos que impõem um elevado custo sobre toda a cadeia produtora de petróleo, que é grande no total de investimentos em capital fixo.
Além disso, o escândalo das propinas atingiu frontalmente as maiores empresas construtoras do país, o que coloca sérias dúvidas de que no futuro próximo terão alguma capacidade de contribuir na realização dos investimentos de infraestrutura. Às incertezas vindas da desaceleração do crescimento somam-se as incertezas sobre os desdobramentos políticos da crise na Petrobrás.
Sem ilusões. Esta breve comparação ilustra que não podemos ter ilusões de que o ajuste de 2015 possa ter uma rota semelhante ao de 2003 no que diz respeito às suas consequências econômicas. Já no plano político há uma enorme diferença entre o primeiro mandato de Lula, que havia sido eleito com ampla maioria de votos e era o depositário das esperanças de que mudaria o Brasil, e um governo eleito por estreita margem de votos, desgastado por uma sucessão de fracassos no plano econômico e imerso em uma enorme crise política.
A única boa notícia até agora é a indicação de Levy para o Ministério da Fazenda. Que Deus o ilumine!
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