Sua vida política organizou-se ao redor de relações com coleção de ONGs. Seu partido chama-se Rede para marcar uma distância com o sistema político-partidário
No registro do lugar-comum, Dilma Rousseff é associada com qualificativos como rude, ríspida, mandona e autoritária. No mesmo registro, atribui-se a Marina Silva qualidades opostas: suavidade, doçura, flexibilidade, reflexão. A gerente tecnocrática, de um lado; a filósofa da “nova política”, do outro. O lugar-comum é a notação do mundo das aparências. Os primeiros passos de Marina como candidata presidencial oferecem indícios de que o contraste é uma má caricatura — e, ainda, de uma similitude fundamental entre as duas candidaturas.
Marina rejeitou participar das campanhas de Lindbergh Farias (PT-RJ), Geraldo Alckmin (PSDB-SP) e Beto Richa (PSDB-PR), apoiados pelo PSB, sob o curioso argumento de que sua ausência desses palanques fora previamente acordada com Eduardo Campos. O gesto equivale a selecionar exclusivamente os produtos que lhe interessam: da prateleira do presente, ela fica com a posição de candidata presidencial; da prateleira do passado, com um acordo aplicável apenas a uma postulante à vice-presidência. Das fagulhas da manobra oportunista acendeu-se uma fogueira no PSB. Mas a luz desse fogo ilumina algo mais relevante: a crença de Marina de que uma pureza singular proporciona-lhe liberdades políticas excepcionais.
Na réplica à pergunta de um jornalista encontram-se pistas na mesma direção. Indagada sobre sua permanência no PSB caso triunfe na corrida ao Planalto, Marina saiu-se com uma não resposta, articulada na forma de um longo desvio em torno das balizas da “nova política”. Ao sonegar a informação, a candidata circunda uma dúvida legítima de todos os eleitores: afinal, o voto nela tem o potencial de sagrar uma presidente do PSB ou da Rede? Contudo, para além da constatação de que Marina refugia-se em ambiguidades dignas da “velha política”, a não resposta contém um elemento mais esclarecedor.
À pergunta, a candidata replicou, hieraticamente: “Nós não devemos tratar o presidente como propriedade de um partido. A sociedade está dizendo que quer se apropriar da política. E as lideranças políticas precisam entender que o Estado não é o partido, e o Estado não é o governo.” Em tudo isso, há um sopro de justa aversão à putrefata elite política brasileira — e uma crítica pertinente à indistinção lulopetista entre Estado, governo e partido. Entretanto, o núcleo do raciocínio situa-se na palavra “sociedade”, traduzida de modos diversos pelas diferentes correntes de pensamento político. O que é a “sociedade”, segundo Marina?
Segundo Margaret Thatcher, “essa coisa de sociedade não existe”. De acordo com o polo ultraliberal, existem apenas indivíduos que realizam intercâmbios no mercado. No extremo oposto, encontra-se o polo neocorporativista, que define a sociedade como um conjunto de “coletivos” legitimados por um selo estatal. O lulopetismo coagulou essa concepção pelo Decreto 8.243, que institui a “democracia participativa” e normatiza os “conselhos de políticas públicas”. No fundo, o governo está dizendo que a sociedade é uma extensão do Estado, o ente responsável pela seleção dos “movimentos sociais” convidados a se sentar à volta das mesas de negociação.
Mas, e Marina? Dois meses atrás, a então candidata a vice defendeu a substância do Decreto 8.243, que ressurge numa versão preliminar de seu programa de governo. A vida política de Marina organizou-se ao redor de suas relações com uma coleção de ONGs. Seu partido chama-se Rede para marcar uma distância com o sistema político-partidário. Teia de movimentos, de ONGs — eis o sentido do nome cunhado pelos “marineiros”. Na sentença “a sociedade quer se apropriar da política”, não é abusivo ler que o Estado deve estabelecer uma relação preferencial com as ONGs “marineiras”.
À primeira vista, a Marina “doce”, “flexível” e “reflexiva” concorda com um princípio caro ao lulopetismo — ou seja, à “ríspida”, “mandona” e “autoritária” Dilma. Tanto uma quanto a outra, ao que parece, imaginam-se portadoras da prerrogativa de falar pela “sociedade”. A diferença residiria no detalhe: os “movimentos sociais” do lulopetismo não são os mesmos que os do “marinismo”. Nessa linha de raciocínio, não é casual que Marina sinta-se à vontade para ignorar as alianças do partido cuja sigla ostenta diante dos eleitores e para desdenhar da indagação sobre sua filiação partidária na eventualidade da vitória.
Todo o poder às ONGs! — é isso a “nova política” cantada no verso difícil de Marina? O lulopetismo degradou as instituições da democracia representativa, especialmente o Congresso, em nome de uma “democracia participativa” que funciona como metáfora de seu próprio poder. Nessa moldura, o projeto de uma “nova política” vertebrada pelos movimentos “marineiros” significaria mais continuidade que ruptura — e o “novo” seria tão somente um disfarce eleitoral do “velho”.
É cedo demais, porém, para formular diagnósticos definitivos. Marina é uma obra aberta, no sentido positivo da expressão. A evolução do pensamento “marineiro” expressou-se, em 2010, por uma narrativa avessa ao sectarismo, capaz de tecer elogios paralelos à estabilização econômica de FHC e às políticas contra a miséria de Lula. Hoje, na candidata comprometida com a restauração da credibilidade do tripé de política macroeconômica, há poucos traços da senadora petista que votou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Um sintoma da abertura à mudança apareceu em suas últimas declarações, segundo as quais “aprofundar a democracia significa a valorização das instituições”, e no alerta de que a versão preliminar do programa não passou pelo seu crivo.
A candidatura de Marina surfa na onda imensa de indignação popular contra a “velha política” — ou seja, a ordem de coisas que estimula o consumo privado sem produzir bens públicos. Nem por isso ela deve ser autorizada a utilizar o refrão da “nova política” como instrumento de prestidigitação.
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