segunda-feira, março 10, 2014

Devagar com o andor - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 10/03

A redução de leitos para dependentes de drogas em hospitais e de vagas em comunidades terapêuticas tende a ser um remédio amargo demais para o estágio da doença



“Precisamos falar sobre drogadição.” A frase, algo chavão, expressa o atual estado do problema. Pede um retrospecto. Desde a década de 1970, o Brasil experimenta o que se convencionou chamar de luta antimanicomial. O movimento nasceu de décadas de traumas provocados pelos sanatórios e hospitais psiquiátricos, verdadeiros campos de concentração vistos com normalidade. Um dos símbolos desse combate foi o curitibano Austregésilo Carrano, autor de O canto dos malditos, livro que inspirou o filme Bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzky. Serviu de alerta geral.

Deve-se reconhecer a luta antimanicomial como um dos capítulos mais luminosos do movimento social no Brasil. O tratamento na base do choque deixou milhares de vítimas, como mostrou o livro-reportagem Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex, publicado em 2013. O movimento pôs fim a uma cultura nefasta de tolerância, que até então parecia ela mesma imune à lucidez. Deve-se colocar essa história lado a lado à que levou à criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, e às conquistas do movimento negro. O país reagiu. E viu que estava fazendo a coisa certa.

As conquistas que levaram a uma reviravolta no atendimento às vítimas de drogadição, contudo, não devem ser colocadas na redoma, como se nada nem ninguém pudesse tocá-las. São políticas em construção. Por um lado, a mentalidade em relação às drogas ainda guarda alguns ranços medievais. Por outro, causa ansiedade geral a redução contínua de leitos. Em vez deles, buscam-se políticas mais orgânicas, que incluem o enfrentamento das dificuldades do paciente, da família e de seus pares. É uma estratégia de certezas indiscutíveis, mas que – pelo menos no senso comum – parece tropeçar no que se convencionou chamar de “epidemia do crack”, tragédia que pede medidas de emergência. Diante dela, a política antimanicomial soa um tanto idealizada. Daí todo o mal-estar que essa discussão provoca.

Dizer que o mal anda mais rápido que o remédio não significa que o remédio não seja bom, mas que será derrotado por seu uso inadequado. Mas esse argumento costuma ser recebido da pior forma possível. A internação compulsória ou a política de abrigamento e bolsa, recém-implantada na gestão Fernando Haddad, na prefeitura de São Paulo, dividem opiniões, até porque as opiniões estão de fato à flor da pele, o que sugere o óbvio ululante: é preciso pensar as premissas da luta antimanicomial no contexto de drogadição galopante que assalta o país. Não se trata de voltar atrás, trata-se de entender o momento em que estamos, absolutamente fora do previsto.

Dá para conversar? Espera-se que sim. Até porque entre os filhos diletos da antimanicomial estão as novas diretrizes de atendimento de vulneráveis, desenvolvidas no governo federal. Isso vale para a população de rua, para crianças e adolescentes abandonados e em conflito com a lei e para as vítimas de drogadição. Seguem uma lógica simples – diminuem os abrigamentos, aumenta-se a formação de uma rede de atendimento. Mas a questão é o tempo que uma rede exige para se formar e quem devem ser os protagonistas na sua construção. O processo, tudo indica, deveria ser homeopático, dosando a espera, a implementação de políticas e as urgências que batem à porta todos os dias, tomando de assalto pacientes e seus próximos.

Se parecer abstrato demais, basta dizer que comunidades terapêuticas, chácaras de reabilitação – muitas mantidas por igrejas e ONGs – soam estranhas na nova ordem. Como publicou a Gazeta do Povo na última quinta-feira, em reportagem sobre a redução de 50% nas verbas para o programa antidrogas do município, o próprio ministro da Saúde, Arthur Chioro, é reticente com as comunidades de apoio. Vê-as como espaços de segregação. Um mal desnecessário. Mas nem precisaria ele dizer – as novas ordens federais já o dizem, deixando em polvorosa o setor de atendimento mais tradicional, ignorando todo o bem que essas comunidades já fizeram e continuam fazendo, e deixando implícita aquela mentalidade estatólatra que despreza as soluções criadas pela comunidade.

O andor anda rápido demais. Devagar com o andor: pode se repetir nas casas de apoio e abrigos o que aconteceu nos hospitais, na última década. Sem leitos, sem vagas e sem práticas de atendimento amadurecidas, o novo não vigora. No seu lugar, o caos. A conta pode ser alta. A luta, perdida.

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