O Estado de S.Paulo - 23/03
O que é um camponês? Num mundo comandado pela vida urbana, é pergunta que se tornou excêntrica. Todos nós, no entanto, intuímos sobre o seu significado, lembrando as famílias rurais "presas à natureza", seja pela pobreza extrema ou, então, por formas de dominação exercidas por terceiros.
No passado feudal, aristocratas subjugaram os camponeses para criar os "servos da gleba", mecanismo que garantia as provisões da corte. Foi expressão analisada por Raymond Williams, um culto marxista galês e um dos fundadores, nos anos 1960, dos chamados "estudos culturais" e da Nova Esquerda inglesa. O termo foi dissecado em seu pequeno livro Palavras-chave, publicado em 1976 e lançado entre nós longas três décadas depois. Na obra, camponês obedece à designação acima, mas o autor adverte que aquele sentido original havia "praticamente deixado de existir na Inglaterra no final do século 18".
As transformações produtivas substituíram-no por novas acepções relacionadas à expansão capitalista no campo. Antes uma classe cativa, transformou-se em outra, agora a dos trabalhadores livres. E assim desapareceram os camponeses como categoria de análise, o termo sendo então usado apenas como abuso verbal - "pessoas comuns, caipiras".
Se o significado de camponês e seu respectivo processo social são consagrados na literatura científica e na vida real, por que autoridades governamentais brasileiras vêm forçando um fantasioso discurso em torno da existência de "novos camponeses" no País? À luz do extraordinário desempenho da agropecuária no Brasil - em breve o maior produtor mundial de alimentos, superando os EUA -, por que esse surpreendente obscurantismo? Por que autoridades e seus muitos pesquisadores chapa-branca imaginariam existir a possibilidade de uma volta ao passado?
Sigamos: e "povos tradicionais" o que seriam? Essa é outra expressão da narrativa dominante em nossos dias, destinada a desenvolver uma interpretação que possa corresponder não às realidades agrárias, mas apenas à ideologia de grupos partidários incrustados no Estado. Existiriam povos tradicionais no Brasil, excetuadas as comunidades indígenas? Novamente há aqui a idealização romântica que lembraria as centenárias comunidades rurais europeias, portadoras de facetas culturais específicas - e tradicionais. Omite-se que o adensamento da tradição exige longo tempo histórico de interação humana para ser enraizado e se traduzir em costumes e hábitos próprios, concretizando a autoidentificação de determinado grupo social. A História brasileira, no entanto, é muito diferente: somos uma nação de migrantes, ziguezagueando continuamente entre as diversas regiões do País, sem chances históricas para constituir uma cultura distinta em regiões particulares. Por isso nossa matriz cultural é rasa, facilmente mutável e resistimos à estabilidade. A maioria dos brasileiros nem sequer mora no seu local de nascimento e, assim, como poderia ter ocorrido o desenvolvimento de tradições e, por conseguinte, a constituição de povos ditos tradicionais?
A lista prossegue: o que dizer de certa agroecologia, objeto de diversas chamadas públicas e editais do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do CNPq ou do Ministério do Desenvolvimento Social, nos quais nunca é oferecida a definição da palavra? Ou seja, recursos públicos distribuídos fartamente sem nem mesmo existir clareza alguma do que isso significaria em termos concretos. E a expressão agricultura familiar, que é hoje tão fortemente institucionalizada? Tem sido usada acriticamente. Sabem todos que a lei que a formalizou em 2006 sugere que os pequenos produtores não devem contratar assalariados e, adicionalmente, não ter outras fontes de renda que não as da atividade agrícola? Só então se credenciariam às políticas governamentais. Como justificar tamanha patranha? Por que pequenos produtores não podem contratar assalariados, alguém explicaria?
A história da esquerda, no Brasil ou internacionalmente, tem sido repetidamente pontuada por contínuos equívocos, práticos e teóricos, ou erros monumentais, alguns de intensa dramaticidade, pois implicaram vítimas. Apresenta, é certo, um lado virtuoso, sobretudo quando suas lutas impulsionaram a exigência política dos direitos ou uma ação mais democratizante do Estado, em diversos países. Parece inegável, contudo, que um de seus ramos, a esquerda agrária, sempre esteve à deriva e fez a opção pela cegueira, desde seu nascedouro. Marx nunca se interessou pelo mundo rural nem ofereceu nenhuma teorização a esse respeito, obcecado pelo surgimento do capitalismo industrial. Sobre o campo e suas transformações deixou notas esparsas e desinteressadas. Sem o seu farol, seus seguidores julgaram que o campo obedeceria à mesma dinâmica econômica da industrialização. Por exemplo, o aumento de assalariados rurais, o que não ocorreu em nenhuma região rural conhecida.
No caso brasileiro, a esquerda agrária no poder desde 2003 tem observado um evidente fracasso em suas ações e, reiteradamente, produzido apenas a mentira como sua meta política. A produção agropecuária vem-se concentrando em rapidíssima velocidade, consagrando a agricultura de larga escala, e a única questão social atual, no campo brasileiro, é o encurralamento da pequena produção rural. Nenhuma política operada tem produzido resultados práticos relevantes. São bisonhas suas ações, cujo fundamento é, sobretudo, a ignorância interpretativa sobre o mundo rural brasileiro e suas tendências principais. Ainda mais grave, a área agrária da Esplanada dos Ministérios é autista e hostil a qualquer debate, presa a ideologizações de infantilidade assustadora. É preciso mudar, com urgência, ou o campo petista entrará na História pela porta indesejada: vai consagrar o maior processo de concentração jamais visto num setor da economia brasileira.
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