O GLOBO - 13/01
A partir da bossa nova um inesperado mal se escondia no coração dos homens. Não era o golpe de Estado, o vento encanado ou o bicho do pé. Era a música brega
Cafonas são os beijos que não foram dados e as lágrimas derramadas pela crítica no leito de morte desses cantores outrora chamados bregas e que agora, toda semana um morto, são declarados como joias raras da melhor música brasileira.
Descansem em paz Nelson Ned, Reginaldo Rossi, Wando, Dom, Ravel, Evaldo Braga, Waldick Soriano, Lindomar Castilho e tantos outros no mesmo panteão dos que já se foram, grandes artistas marcados pela dor macambúzia de jamais conhecerem em vida o beijo refrescante do elogio impresso.
Perdoem esta espinhela caída que vira e mexe acomete a alma fúnebre nacional, uma viúva escrota sempre disposta a declarar simpatia culta hoje pelo cantor velhinho de mau gosto que morreu ontem.
Vocês eram pobres, tinham a pele oleosa, o cabelo esticado com meia de nylon e pararam de queimar as pestanas no ginásio. Queriam cantar da vida apenas aquilo que a bandida fornecia de mais sentimental, um roteiro de dor, perfídia, perfume de gardênia, mulheres que iam embora e as súplicas ajoelhadas para que voltassem. Vocês sofriam. Os bacanas não gostam disso.
Os críticos acham que cantor brega com valor é feito bandido bom, só existe depois de morto — e esperaram Nelson Ned morrer, anão coitado apedrejado em vida, para, compungidos, segurar-lhe a alça do caixão. Quando tiveram a certeza de que o corpo começava a esfriar, disseram que ia ali a versão nacional de um Frank Sinatra bonsai.
Eu nunca namorei uma garota em cadeira de rodas, como fez Fernando Mendes, eu nunca tirei mulher da zona, como perpetrou Odair José, mas eu estava lá. Vi. Desde aquele dia de 1958, quando estalaram sob as agulhas das vitrolas nacionais as primeiras bolhas do compacto de João Gilberto com “Chega de saudade”, criou-se um novo país de belas sonoridades — ao mesmo tempo surgiu a maldição de que do outro lado do ringue ficariam os párias do mau gosto. Passamos a viver num apartheid musical. Quem não cantasse baixinho estava fedido. Quem se deixasse iluminar pela luz difusa do abajur lilás era um perdedor.
O país do santo barroco baiano, sempre orgulhoso do turbante de frutas de Carmen Miranda e da cabeleira de príncipe na cabeça do mestre-sala, deu meia volta no sapato bicolor com que ia à pândega na gafieira. Pisou no freio do exagero estético. A partir da bossa nova surgia um inesperado mal que se escondia no coração dos homens. Ele devia ser evitado a todo custo, à base de enteroviofórmio, acordes dissonantes, amor, sorriso e muita flor. O novo mal brasileiro não era o golpe de Estado, o vento encanado ou o bicho do pé. Era a música brega.
Antes havia Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Joel e Gaúcho, Isaurinha Garcia, Custódio Mesquita, todos misturados e saudados no mesmo cordão encarnado da falta de preconceito. Diferentes, mas grandes artistas ouvidos por ricos e pobres, analfabetos e espertos. Mario Reis, o dândi do Copacabana Palace, ia até a Lapa gravar em primeira mão os sambas do malandro Sinhô. Antônio Maria enchia os cornos de uísque e mandava Nora Ney repetir “Ninguém me ama, ninguém me quer”. Alguns iam de dó de peito, outros se acompanhavam de zabumbas. A batuta de Radamés Gnatalli não perguntava nada. Regia a todos no democrático palco-estúdio da Rádio Nacional.
Não havia bem e mal, brega e chique, na MPB. Tanto fazia a comadre Sebastiana do Jackson do Pandeiro quanto a Nega Luzia do Wilson Batista ou a normalista do Nelson Gonçalves. Todas comíveis, lindas, musas cortejadas nos salões. Foram-se. Como cantava Nelson Ned, “tudo passa, tudo passará”.
Talvez por isso, neste momento em que a música popular pulsa tão broxa, todo mundo querendo se passar por cool, talvez por isso pinguem essas lágrimas da crítica pelos artistas-mortos que ela maltratou em vida.
Os tais bregas botavam os bofes para fora, como Núbia Lafayette, rasgavam os paletós no auge da súplica, como Orlando Dias, saíam declamando poemas como Silvinho. As fãs de Wando, agradecidas por terem suas vidas colocadas com tanta emoção em cena, jogavam sobre o palco o testemunho efusivo da vibração de suas calcinhas. Foi no tempo do crime passional, do coração fora do peito, do pulso sangrando, da camisola do dia tão transparentemente macia, da porta batendo para nunca mais e do chifre espetando a alma nacional.
Paulo Sérgio, Anísio Silva, Evaldo Braga, Luis Ayrão, Claudio Fontana, Altemar Dutra e Amado Batista. Nesses aplicativos modernos, onde as moças de hoje avaliam os rapazes começando pelas suas dimensões penianas, seria colocada ao lado do nome desses cantores bregas a hashtag #sentimental. Seria uma avaliação positiva. O tamanho do documento era outro
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